Dois Pontos

Há muitos anos venho escrevendo para me distrair: não para ensinar, nem para convencer, mas para tornar habitável o mundo interno que a leitura e a reflexão tornam possível. Os cadernos se acumularam, as notas se sobrepuseram, pequenas ideias e intuições foram deixadas à margem dos livros que me acompanharam como companheiros invisíveis ao longo da vida. Apenas recentemente percebi que todas essas formas dispersas obedeciam a uma mesma fonte, uma mesma tonalidade afetiva, uma mesma disposição intelectual: acolher antes de julgar, compreender antes de classificar, escutar sem desejar impor.

Pensei, então, que talvez esse impulso fosse algo mais que um hábito: talvez um método, talvez uma virtude. Algo nascido de uma falta — lembro-me do poema de Drummond, A falta que Ama, do livro As Impurezas do Branco — uma falta compassiva regida por uma paixão intelectual. Não é, nem pretende ser, uma categoria moral. Não deriva da bondade ou da piedade.

É, antes, um modo de relação com o conhecimento: pensar com humildade, sem certezas, buscando o rigor, aspirando à coragem, mas mantendo o pensamento suficientemente aberto para ser modificado pelo que encontra.

É uma paixão que queria ser compartilhada num diálogo, uma compaixão intelectual que nasce da constatação de que ler é sempre um encontro precário: autor e leitor tentam nomear o que os atravessa; ambos carregam sombras, incompletudes, intuições em estado germinal. Ao reconhecer essa falta compartilhada, torna-se possível instaurar um diálogo renovado — sem violência, sem medo, sem arrogância interpretativa.

Este espaço nasce, portanto, da decisão de tornar público um gesto pessoal: a leitura como hospitalidade; a crítica como forma de cuidado; o pensamento como afinidade de eleição.

O blog reúne ensaios, notas e reflexões que atravessam a filosofia, a literatura, a história, a mística e outras regiões de sentido. Não busca sistematicidade (que não possuo), nem autoridade (que não tenho), mas interlocução amiga.

A base epistemológica deste espaço é simples: compreender é incluir sem dominar; é ser modificado pela alteridade sem dissolver-se; é manter a lucidez no ponto em que a luz da sensibilidade se intensifica.

No limite, compreender é acolher — no sentido mais amplo, rigoroso e generoso da palavra.

Se há aqui algum propósito, que seja o de oferecer uma pausa: uma pausa diante do imediatismo hermenêutico, da hiperinterpretação, das certezas cruas. Um lugar onde a leitura, enquanto ato pessoal, recupere sua dimensão artesanal, meditativa, humana e, no fim, comunitária. Uma pequena praça em uma cidade impossível, onde possamos pensar sem pressa e aprender com confiança como compreender com generosidade.

O Coração do Agnóstico

Estou debruçado na releitura do Purgatório da Divina Commedia. Este canto intermediário do grande poema tem sido a fonte de minhas reflexões e de minhas alegrias poéticas nos últimos anos. Longe da beleza cruel e amarga do Inferno e das inefáveis e transparentes dádivas do Paradiso, o Purgatório sempre me pareceu o canto humano por excelência, o canto terrenal e secular da poesia de Dante. É nele que podemos encontrar uma paisagem mais humana, uma conformação mais reconhecível de nossa própria condição de penitentes. Ali não estamos no infra mundo do Inferno, não estamos no super mundo das esferas do Paraíso, estamos em um espaço reconhecível como a nossa Terra, novamente no solo perceptível de nosso planeta e na medida de nossa humanidade.

É ainda o Canto de Virgílio, a mais profunda das personagens da Divina Comedia.

No coração do agnóstico paira metafórica a sombra de Virgílio. Principalmente a do Virgílio do Purgatório e que no canto III, melancolicamente, “chinó la fronte e piú non disse e rimane turbato”. Da mesma forma em que na concepção do agnóstico há também um céu entrevisto e que jamais – dada a condição de sua natureza e existência – jamais será alcançado. Para este só haverá por certo os sofrimentos da consciência das várias visões do Inferno, a suave alegria, a menor alegria, talvez, de testemunhar por alguns momentos aqueles que, possuindo a fé, penetrarão no Paraíso. Assim como Virgílio, para o qual a razão é insuficiente, mas também a graça é pouca, os peregrinos do agnosticismo estão condenados a zona intermediária entre a sombra e a luz, ao conflito de uma interrogação sem resposta, a sombria certeza de seu lugar. A perdição de Virgílio se dá em um acidente cronológico, nasce antes do advento de Cristo em uma cultura pagã. A condenação do agnóstico é a sua razão ter indeterminado a sua fé que já tinha sedimentado a desconfiança da razão. Convivendo com os niilistas do ateísmo e com os beatos da fé o agnóstico reflete, medita e cala e seu silêncio parece ao de Virgílio e é, como ele, um exilado de Deus.

Memórias do Condado de Hécate

Gostei muito da leitura do livro de contos de Edmund Wilson Memórias do Condado de Hécate. Há muita elegância na prosa de Wilson e principalmente uma capacidade descritiva que vai aos detalhes mais importantes de uma determinada atmosfera. A crítica em geral despreza o Wilson da prosa de imaginação e praticamente o admoesta a ficar nos limites da crítica. Acho demasiadamente estreita esta visão, e embora a ficção de Wilson não ascenda a dimensão de sua prosa, deve e merece ser lida e meditada pelos que gostam da literatura.

Dois dos seis contos, me chamaram a atenção A princesa dos cabelos dourados e Os Milholands e sua alma condenada. O primeiro é uma narrativa bastante crua, quase cruel na sua sutil descrição do relacionamento do personagem com duas mulheres de classes sociais diferentes. Wilson, com seu estilo objetivo e direto caracteriza a imensa distancia destas duas mulheres através de vários detalhes como a roupa, os gostos, a fala e principalmente os seus ambientes e seus passados. Mas principalmente disseca o tratamento de classe, a base de amargura e preconceito que está inscrita em nosso comportamento social, no modo como lidamos com os seres humanos através de uma rede de relações construídas sobre os alicerces da luta de classes. É um conto amargo de amor.

Os Milholands e sua alma condenada é uma divertida narrativa, sarcástica, irônica sobre o mundo editorial e, por tabela, de toda a falsidade e representação artificial do mundo intelectual. Wilson demole uma a uma as imposturas da vida editorial da América do início do século vinte, o tom postiço de suas pretensões, a falsidade de suas mais altas alegações de cultura e seriedade. O conto desnuda o modo pelo qual as mais baixas demandas materialistas se fantasiam para o público como altas expectativas culturais e jogos civilizados; como os personagens que encenam uma alta espiritualidade não passam de materialistas grosseiros que encontraram no mundo dos livros um mercado adequado para as suas ambições. O alvo dele é claro é a sociedade capitalista americana do início do século XX, o modo como tudo era visto como mercadoria e produto, onde tudo estava envolvido pelo desejo puro de lucro e o cálculo frio das perdas e ganhos financeiros. Um grande conto, mas tem duas faltas: a primeira é que Wilson de uma certa maneira apresenta este mundo em contraposição – ele imagina – de uma época passada, o século XIX, onde os verdadeiros intelectuais ainda faziam o jogo verdadeiro do espírito. Há uma certa idealização da geração anterior que, esta sim, ainda estaria imbuída dos “verdadeiros valores da América”. A segunda falta é a seguinte: este é um conto de muito humor e sarcasmos e crítica. Sob o olhar do autor nada fica sem ser ridicularizado ou ao menos reduzido a sua verdadeira dimensão, em geral, mesquinha e ridícula. Tudo está posto à prova, tudo menos o autor. Ao narrador de Wilson (e suspeito, ao próprio Wilson) falta a auto ironia, o dom superior que, sem ser depreciativo, permite a alguém rir de si mesmo. O narrador de Wilson se leva a sério mesmo fazendo parte do mesmo ambiente editorial que ele perfeitamente ironiza. Não consegue rir de si mesmo e isso faz de parte de seu riso apenas escárnio. Mas ao perceber isso nós também rimos de Wilson.