
Sempre gostei de teatro, ver peças de teatro, ler peças de teatro. Desconfio que seja algo geracional. Durante a Ditadura Militar (1964-1985) o teatro foi uma das expressões artísticas que mais sofreram com a repressão, uma repressão que acabava gerando consequências inesperadas. Por exemplo, com a proibição das apresentações mais politicamente engajadas (Vianinha, Guarnieri, Peixoto, Plinio Marcos) se multiplicaram as montagens de textos clássicos que, de alguma forma, driblavam a censura. Lembro da montagem do Doente Imaginário de Moliére ou Os Veranistas de Máximo Gorki e até de um Jardim das Cerejeiras de Tchekhov entre outras. Mas quando a ditadura chegou ao fim pudemos enfim assistir a, por exemplo, Rasga Coração, Eles não usam Black-tie, Brecht, etc… Recordo que um dos primeiros exilados a voltar e que deu uma palestra lotada no então Teatro Dulcina, foi o dramaturgo e encenador Augusto Boal cujo Teatro do Oprimido era um dos inimigos do sistema militar. Daí o meu interesse imediato quando vi esse livro. Um livro importante para qualquer um que não somente goste de teatro e aprecie a produção teatral (textos e cenas), mas principalmente para os profissionais da arte da representação, atores, diretores que gostam de refletir sobre os meandros de seu ofício. Brook pensa o teatro de uma maneira profunda, ao mesmo tempo em sua verticalidade e na sua horizontalidade. Seu fazer teatral neste livro se transforma em matéria para a reflexão, inquirição, aprendizado. É ao mesmo tempo reflexão filosófica e apresentação de artesanato, trata dos princípios com os quais desenvolve o seu trabalho e ao mesmo tempo relata a sua experiência no palco real, no dia a dia do trabalhador teatral. Assim é livro de teoria e prática, compreensão histórica e sensibilidade do cotidiano.
O livro se divide em quatro partes, quatro apresentações de uma determinada visão do fenômeno teatral, ou seja, quatro teatros. O Teatro Moribundo, o Teatro Sagrado, o Teatro Rústico e o Teatro Imediato. O Teatro moribundo seria aquele teatro que obedece às leis de mercado e corre pouco risco, o teatro que é uma profissão, que pode ser tecnicamente perfeito, arquiteturalmente eficaz, correto, mas que está afastado da finalidade da arte, que é simplesmente um produto. Brook compreende e aponta a perda da centralidade do teatro frente aos competidores mais ágeis como o cinema e a televisão. A competição, que afinal tem que se dar no campo material do capitalismo, leva a uma acomodação nos padrões médios e já conhecidos de produção e representação e este padrão de mediocridade traz para a sua órbita tanto Brecht como Shakespeare, Moliére ou Sófocles. É o teatro das repetições e das fórmulas aceitas e já decodificadas por um público cuja tendência é a passividade. Este teatro deixou de responder a pergunta: tem o teatro realmente algum lugar em nossas vidas?
O segundo capítulo, o Teatro Sagrado, é uma leitura da função primordial do Teatro. O Teatro Sagrado é aquele que faz irromper no espaço cênico o imaterial do processo teatral, faz visível o que era até então invisível, oferece uma experiência viva e transformadora para aqueles que ali estão. Não somente os espectadores, mas também aos atores e diretores. Brook neste capítulo desvela a sua visão do teatro como uma experiência humana profunda, comunitária, ritualística no sentido da participação em uma celebração ampla, completa, transformadora. Neste capítulo central Brook explicita sua compreensão do teatro como uma arte relacional de impacto em comunidades e indivíduos. Para ele a plateia torna-se parte da ação teatral pois da resposta desta tudo depende e converge. Aqui aparece a visão clara de Brook que percebe o fenômeno teatral como um ritual, uma experiência transformadora que mira o absoluto.
O Teatro Rústico. É o teatro popular, o teatro dos que amam o teatro apesar de tudo e mesmo sem a concepção total do evento cênico, fazem um teatro vivo, um teatro em diálogo com a comunidade e que consegue se expressar pois vive na autenticidade de seus sujeitos. Para Book este teatro salva o dia, sustenta a cotidianidade das apresentações teatrais. Ele é sujo, surrado, o acabamento é imperfeito, mas tem a veracidade de sua aplicação. É o teatro próximo do povo, o teatro de marionetes. O teatro das ruas e dos circos. Este teatro possível sabe estar longe de qualquer tipo de ritual, um ritual não mais esperado pelas plateias, um ritual do passado. Mas a sua veracidade, a sua sinceridade é para Brook como passagens abertas que o homem de teatro pode utilizar para fazer emergir novamente a sacralidade do teatro.
O Teatro Imediato é o teatro pessoal de Brook aquele teatro que ele tentou fazer e que ele recomenda. Brook trabalha com a concepção essencial da arte teatral, um minimalismo de forma e conteúdo. Narra a sua experiência africana de representações cujo palco era apenas um tapete a delimitar o campo de ação, sublinha a relação palco plateia, reafirma o teatro como arte comunal e social. Afirma invenção continuada do espetáculo teatral onde o diretor está tateando em busca de estratégias e meios para dar efetividade a visão de uma peça. Aqui reaparecem as figuras essênciais de seu ofício Brecht, Artaud, Graham e sobretudo Shakespeare. Desde o início de suas preocupações teatrais, mesmo no ápice de sua apresentação do revolucionário Sonho de uma Noite de Verão em 1970 (representação central nas interpretações posteriores de Shakespeare em todo o mundo), foi Shakespeare o anjo tutelar de sua arte, a figura constante a mover a sua inquietação de artista.
Deve-se sempre observar que a apresentação teatral para Brook trata o ritual sem nenhuma conotação mística ou religiosa, ele recusa mesmo a concepção do teatro como uma espécie de igreja. Não há transcendência no sentido místico de sua compreensão do teatro, o que há é uma imanência tão profunda que o sentido do real se apodera da sensibilidade dos participantes em uma experiência estética fundamental, e assim a sua prática aparece porque é uma recusa da teoria. Para ele toda a verdade teatral tem de surgir pela descoberta passo-a passo do núcleo da experiência.
Imagino que na perspectiva do agora, onde a mediação das mídias tende a afastar a experiência pessoal do público da radicalidade da representação do ator, haja uma urgência no resgate dessas reflexões que ampliam a vasta humanidade do fazer teatral e a sua insubstituível pessoalidade. Refletir o gesto imediato do diálogo humano, ratificar a importância do contato direto entre as pessoas neste universo cada vez mais mediado pela artificialidade, pressupõe em seu sentido, o retorno do humano para o humano. Desta forma, penso que Peter Brook tem algo muito importante a nos dizer.








