Leitura de O Espaço Vazio de Peter Brook

Sempre gostei de teatro, ver peças de teatro, ler peças de teatro. Desconfio que seja algo geracional. Durante a Ditadura Militar (1964-1985) o teatro foi uma das expressões artísticas que mais sofreram com a repressão, uma repressão que acabava gerando consequências inesperadas. Por exemplo, com a proibição das apresentações mais politicamente engajadas (Vianinha, Guarnieri, Peixoto, Plinio Marcos) se multiplicaram as montagens de textos clássicos que, de alguma forma, driblavam a censura. Lembro da montagem do Doente Imaginário de Moliére ou Os Veranistas de Máximo Gorki e até de um Jardim das Cerejeiras de Tchekhov entre outras. Mas quando a ditadura chegou ao fim pudemos enfim assistir a, por exemplo, Rasga Coração, Eles não usam Black-tie, Brecht, etc… Recordo que um dos primeiros exilados a voltar e que deu uma palestra lotada no então Teatro Dulcina, foi o dramaturgo e encenador Augusto Boal cujo Teatro do Oprimido era um dos inimigos do sistema militar. Daí o meu interesse imediato quando vi esse livro. Um livro importante para qualquer um que não somente goste de teatro e aprecie a produção teatral (textos e cenas), mas principalmente para os profissionais da arte da representação, atores, diretores que gostam de refletir sobre os meandros de seu ofício. Brook pensa o teatro de uma maneira profunda, ao mesmo tempo em sua verticalidade e na sua horizontalidade. Seu fazer teatral neste livro se transforma em matéria para a reflexão, inquirição, aprendizado. É ao mesmo tempo reflexão filosófica e apresentação de artesanato, trata dos princípios com os quais desenvolve o seu trabalho e ao mesmo tempo relata a sua experiência no palco real, no dia a dia do trabalhador teatral. Assim é livro de teoria e prática, compreensão histórica e sensibilidade do cotidiano.

O livro se divide em quatro partes, quatro apresentações de uma determinada visão do fenômeno teatral, ou seja, quatro teatros. O Teatro Moribundo, o Teatro Sagrado, o Teatro Rústico e o Teatro Imediato. O Teatro moribundo seria aquele teatro que obedece às leis de mercado e corre pouco risco, o teatro que é uma profissão, que pode ser tecnicamente perfeito, arquiteturalmente eficaz, correto, mas que está afastado da finalidade da arte, que é simplesmente um produto. Brook compreende e aponta a perda da centralidade do teatro frente aos competidores mais ágeis como o cinema e a televisão. A competição, que afinal tem que se dar no campo material do capitalismo, leva a uma acomodação nos padrões médios e já conhecidos de produção e representação e este padrão de mediocridade traz para a sua órbita tanto Brecht como Shakespeare, Moliére ou Sófocles. É o teatro das repetições e das fórmulas aceitas e já decodificadas por um público cuja tendência é a passividade. Este teatro deixou de responder a pergunta:  tem o teatro realmente algum lugar em nossas vidas?

O segundo capítulo, o Teatro Sagrado, é uma leitura da função primordial do Teatro. O Teatro Sagrado é aquele que faz irromper no espaço cênico o imaterial do processo teatral, faz visível o que era até então invisível, oferece uma experiência viva e transformadora para aqueles que ali estão. Não somente os espectadores, mas também aos atores e diretores. Brook neste capítulo desvela a sua visão do teatro como uma experiência humana profunda, comunitária, ritualística no sentido da participação em uma celebração ampla, completa, transformadora. Neste capítulo central Brook explicita sua compreensão do teatro como uma arte relacional de impacto em comunidades e indivíduos. Para ele a plateia torna-se parte da ação teatral pois da resposta desta tudo depende e converge. Aqui aparece a visão clara de Brook que percebe o fenômeno teatral como um ritual, uma experiência transformadora que mira o absoluto.

O Teatro Rústico. É o teatro popular, o teatro dos que amam o teatro apesar de tudo e mesmo sem a concepção total do evento cênico, fazem um teatro vivo, um teatro em diálogo com a comunidade e que consegue se expressar pois vive na autenticidade de seus sujeitos. Para Book este teatro salva o dia, sustenta a cotidianidade das apresentações teatrais. Ele é sujo, surrado, o acabamento é imperfeito, mas tem a veracidade de sua aplicação. É o teatro próximo do povo, o teatro de marionetes. O teatro das ruas e dos circos. Este teatro possível sabe estar longe de qualquer tipo de ritual, um ritual não mais esperado pelas plateias, um ritual do passado. Mas a sua veracidade, a sua sinceridade é para Brook como passagens abertas que o homem de teatro pode utilizar para fazer emergir novamente a sacralidade do teatro.

O Teatro Imediato é o teatro pessoal de Brook aquele teatro que ele tentou fazer e que ele recomenda. Brook trabalha com a concepção essencial da arte teatral, um minimalismo de forma e conteúdo. Narra a sua experiência africana de representações cujo palco era apenas um tapete a delimitar o campo de ação, sublinha a relação palco plateia, reafirma o teatro como arte comunal e social. Afirma invenção continuada do espetáculo teatral onde o diretor está tateando em busca de estratégias e meios para dar efetividade a visão de uma peça. Aqui reaparecem as figuras essênciais de seu ofício Brecht, Artaud, Graham e sobretudo Shakespeare. Desde o início de suas preocupações teatrais, mesmo no ápice de sua apresentação do revolucionário Sonho de uma Noite de Verão em 1970 (representação central nas interpretações posteriores de Shakespeare em todo o mundo), foi Shakespeare o anjo tutelar de sua arte, a figura constante a mover a sua inquietação de artista.

Deve-se sempre observar que a apresentação teatral para Brook trata o ritual sem nenhuma conotação mística ou religiosa, ele recusa mesmo a concepção do teatro como uma espécie de igreja. Não há transcendência no sentido místico de sua compreensão do teatro, o que há é uma imanência tão profunda que o sentido do real se apodera da sensibilidade dos participantes em uma experiência estética fundamental, e assim a sua prática aparece porque é uma recusa da teoria. Para ele toda a verdade teatral tem de surgir pela descoberta passo-a passo do núcleo da experiência.

Imagino que na perspectiva do agora, onde a mediação das mídias tende a afastar a experiência pessoal do público da radicalidade da representação do ator, haja uma urgência no resgate dessas reflexões que ampliam a vasta humanidade do fazer teatral e a sua insubstituível pessoalidade. Refletir o gesto imediato do diálogo humano, ratificar a importância do contato direto entre as pessoas neste universo cada vez mais mediado pela artificialidade, pressupõe em seu sentido, o retorno do humano para o humano. Desta forma, penso que Peter Brook tem algo muito importante a nos dizer.

Camus

Lendo uma biografia de Albert Camus (Morvan Lebesque, Camus par lui-méme) , descubro que ele escreveu atrás de uma imagem onde dois jovens combatem com pedras um tanque de guerra esta frase: “L’absurdité, ce n’est pas um fantôme”

Dias absolutamente camusianos. A atualidade da sensibilidade essencial de Albert Camus. Céu azul, atmosfera clara e perfeita destes dias frios; exuberância do colorido sólido do verdejar da vida de um lado. Do outro, o contraste desta vida, vivida nas ruas pelos miseráveis e despossuídos; as crescentes notícias de guerras e destruições e assassinatos de inocentes e de mulheres e de velhos e de crianças; e fome e desolação e raptos e estupros de hora a hora, e este inferno particular em que se transformou a história humana com seus conflitos espúrios, seu materialismo grosseiro, sua estupidez continuada e o aviltamento constante da existência humana.

É isso: o Absurdo não é, de forma alguma, um fantasma.

AS PEREGRINAÇÕES DA PALAVRA ÉTICA: DA EXTERIORIDADE DA ÉTICA À INTERIORIDADE DA MORAL

“Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades”.

 Platão , A República, livro V

“Como já vimos, há duas espécies de excelência: a intelectual e a moral. Em grande parte a excelência intelectual deve tanto o seu nascimento quanto o seu crescimento à instrução (por isto ela requer experiência e tempo); quanto a excelência moral ela é o produto do hábito, razão pela qual seu nome é derivado, com uma ligeira variação da palavra ‘costume”.

Aristóteles, Ética a Nicômanos, livro II. I

I

É em Aristóteles que encontramos formulado pela primeira vez o uso da palavra ética como virtude moral. No livro II da Ética a Nicomanos lemos: “quanto a excelência moral ela é produto do hábito (ethiké) razão pela qual seu nome é derivado, com ligeira variação da palavra costume (ethos)”. Este ethos é a palavra grega para local, moradia, habitação e o que Aristóteles quer dizer é que o comportamento moral do homem, seu caráter (ἦθος) é um conjunto de ações que ele obtém em casa através do hábito (ἔθος). Mas para a filosofia aristotélica a casa deve ser pensada como toda a polis na medida em que para o cidadão a polis é a verdadeira morada e a ágora o seu âmbito de vivência. Platão, que de uma outra maneira abordou o problema do comportamento humano, entendeu que o ethos humano, o verdadeiro lar do homem, estava no mundo das idéias (eidos: forma) de onde a alma adquiriu o hábito do comportamento justo através de uma série de reaproximações do ethos ideal; este lugar, já que etimologicamente o significado da palavra ética é lugar, em Platão, é um ideal que se torna real na medida em que, pela contemplação da verdade, nos libertamos do fluxo da mera aparência e desvelamos a verdadeira realidade que está além do mundo fenomenológico. Para o mais pragmático Aristóteles este espaço é um ponto determinado de onde pelo uso fomentamos a construção da sociedade. A convergência entre Platão e Aristóteles é que os dois julgam que este ethos humano é eminentemente político e que ele nasce da educação que o homem recebe: por reminiscência em Platão e por repetição funcional em Aristóteles. Os gregos do período clássico possuíam então para a palavra ética um sentimento necessariamente político, dialógico, pressuposto no átrio aberto onde as discussões se davam diária e frequentemente. Ética era o conjunto de habitos adquiridos pela reminiscência ou repetição, hábitos e comportamentos com os quais os homens tomavam o seu lugar na polis e, através da polis, no mundo.

 Ainda na Ética a Nicomanos, cuja grande característica é a busca da cidade perfeita, vemos Aristóteles construir sua reflexão sobre a ética na evolução do comportamento humano em casa com parentes e amigos próximos, até expandi-la para a cidade com seus pares políticos. E devemos perceber que se essa “ética das virtudes” de Aristóteles tem um componente profundamente interno de formação do caráter (hexis), ela está sempre voltada para a solicitação exterior da πολιτική ζωή (vida política). É ainda na Grécia que vemos esta palavra, que no princípio apontou para a intimidade pessoal da casa, – o que para nós é pré-político – tornar-se uma virtude moral, uma Arete, designando a excelência do cidadão. Se do lado do Platão metafísico, do Platão epistemológico colocarmos (um pouco acima, é verdade) o Platão político, perceberemos que esta morada do homem no mundo é o princípio da construção da República que seria o lugar onde a busca mais permanente é o da felicidade humana pela habitação na Cidade Justa.

É em Sócrates que há uma ligeira modificação nos rumos dessa peregrinação da ética já que Sócrates apontava em princípio para uma pura interioridade, regida por um Daimon, formulando uma ética pessoal que não pertencia mais a polis ou a participação política, mas que agora se amparava na consciência individual. Em Sócrates e pela primeira vez, sutilmente, o lugar do humano era a subjetividade, a interioridade, a alma. É um momento chave, um ponto de ruptura perspicaz onde a geografia do costume político cede lugar a autopersuasão que busca ignorar o mundo. Mais que ter seu caráter formado pelo lugar que ocupa na polis o homem agora funda a sua morada em si mesmo e é ele que delimita o espaço da cidade em sua alma e legisla sobre o seu próprio comportamento. A ética socrática do “conhece-te a ti mesmo” tira da exterioridade dos hábitos (o domínio da ideologia) a característica mais importante na formação do homem até então que é o seu desejo de intervenção no espaço público e lança para dentro da alma o novo sítio a ser habitado, controlado, protegido. Agora é a alma, o ser do homem, seu novo ethos, seu lugar em si, o local privilegiado de onde ele vê o mundo e pensa a pólis. A cidade diminui de tamanho e a consciência do homem aumenta. Se é claro que Sócrates ainda é um cidadão, totalmente inserido na polis, ainda que deslocando a fonte da normatividade para o interior da alma, esta tensão que com ele se instaurou só irá se resolver no conflito entre ele e a Pólis, que causará a sua morte. Mas se assim é em Sócrates (e Platão viverá intensamente essa experiência de fissura) em Platão haverá um duplo movimento, para fora e para dentro, pois o sítio privilegiado para o anseio eidético de Platão ainda é a Polis, a Cidade Ideal, a Republica dos Reis Filósofos.

Podemos dizer que na filosofia arcaica dos pré-socráticos o sítio do homem era antes de tudo a natureza, o imediato do mundo real. Entre jônicos e eleatas, ainda vinculados a sociedades aristocráticas, tribais e a formas de vida regidas pelo parentesco, pelo sangue e pela honra, a reflexão moral não se distinguia claramente da ordem natural. O ethos pré-socrático era ainda indiferenciado: não havia separação nítida entre o subjetivo e objetivo, e o homem se percebia como parte de um fluxo vital, complexo e impessoal, um espaço pré-político em que a vitalidade antecede a reflexão. Nesse mundo fortemente hierárquico, a convivência não se dava sob o signo do diálogo entre iguais, mas segundo graus de posição e autoridade; por isso, o que chamamos de ética aparece ali como um ethos embrionário, ainda individual e pouco dialógico.

Com a complexificação da sociedade no século V, a ética assume a feição que ainda hoje reconhecemos: uma relação entre homens, fundada no debate e na reciprocidade. No interior da Paidéia, a ética passa para a regência do costume e do hábito, torna-se processo educativo, e é sobretudo Platão que, ao pensar a formação do Estado, enfrenta de maneira decisiva a questão da ética como Paidéia. Dentro da Paidéia a ética se coloca sob a direção do costume e do hábito, ela é um processo educativo e foi Platão, com sua teoria sobre a formação do Estado que encarou o problema da ética como Paidéia firmemente. Para ele a sociedade educa como um todo e só pode educar se conduzida racionalmente pelos seus melhores membros. Duplamente Platão tenta na Republica tomar o papel educativo de Homero por um lado e dos sofistas (professores de sabedoria) do outro. Vendo de maneira profundamente crítica a influência de Homero sobre os costumes dos gregos, sua pedagogia é da instauração de um novo modo educativo, agora hierárquico e delimitado pela filosofia. Como crítico de seu tempo ele sabe que a totalidade da polis é regida pelos costumes políticos de seus componentes. A democracia que ele testemunha é vítima da virtude e dos defeitos dos homens que a constituíam, costumes este enraizados nas almas dos cidadãos, que ele propunha modificar pela transformação da sociedade e a criação de uma pedagogia aristocrática emanada do espírito de uma legislação ideal.

Assim, na Teoria das Ideias, há o deslocamento da habitação do homem do visível para o invisível, da sensível para o ideal. O local de onde parte a alma humana, seu lar, é um mundo de formas perfeitas onde ela é educada no hábito da verdade. Na metáfora da caverna, ao descer ao mundo real, o espírito esquece de onde adveio e cai no domínio da ilusão e da doxa. Em Aristóteles a Arete (excelência) era produto de uma prática, a perseverança repetitiva, o hábito, que conduz ao desempenho perfeito. Era na polis, como organismo vivo, que o homem tinha a possibilidade, pelo costume, de alcançar a perfeição almejada. Não a lembrança da perfeição testemunhada em sonhos como em Platão, mas o exercício costumeiro da perfeição. Assim é que é em Aristóteles que a ética retorna ao princípio etimológico que a formula: é a expressão de uma destreza, um costume conseguido pela prática, uma ênfase no treino e na perícia (Livro III da Ética a Nicomanos) que realça a força do fazer. Ao se tornar um cidadão da polis, ao habitar uma unidade política sofisticada, o homem apreende uma qualidade moral de ação e meditação, seu comportamento torna-se ético por pertencer as condições que o formula: o debate e a liberdade. A Arete, essa virtude advinda da ética, em Aristóteles é uma virtude eminentemente política, uma potencialidade que se consuma em ação. Como em Platão e em Sócrates parte de uma concretude formal, percebida no princípio da palavra para uma caracterização de cunho filosófico.

 Assim, por cinco séculos as perambulações da palavra ética a levaram à exibição pública no espaço de coabitação entre os homens, os vastos espaços da ágora, os adros entre muros das cidades, os hábitos mesmo interiormente cultivados tinham como objetivo a exterioridade.

II

Foi a Batalha da Queronéia (338) que marcou o fim do período clássico e o início do período helenístico. Com a derrota dos gregos frente aos macedônios temos a primeira modificação importante da palavra ética. Com a perda da autonomia política da Cidade-estado o pensamento grego sofre uma profunda transformação, seu ímpeto político diminui, há uma orientalização de seu caráter e ele se interioriza pela primeira vez naquela percepção já traçada por Sócrates. A ética agora (em Epicuro, em Zenão, nos cirenáicos chamados de socráticos menores) é a expressão do afastamento do homem da ágora, ela agora murmura longe das praças e medita como suportar a realidade e o silencio do Ser. De política a significação da ética torna-se ontológica. Este deslocamento do lugar do homem é um dos reflexos do desabar do mundo grego, do final da polis como organismo político. O império de Alexandre, e logo depois o império romano, retirou as condições (liberdade democracia, debate) através dos quais a palavra ética refletia sobriamente o lugar privilegiado do homem na organização social. No período helenístico não é mais a cidade o centro da preocupação do pensamento. O pensamento busca agora a fuga da cidade e a negação da política na busca por uma existência feliz, onde um dos horizontes é a ausência de dor, a ataraxia. Mas sob o ponto de vista da etimologia isto resultou em uma contradição. Pois o espaço interior, privado, protegido, não é compartilhado com os outros homens. É pessoal, e desta forma perde sua característica de encontro e passa a ser uma habitação solitária cuja voz do primeiro diálogo vem a ser a do homem consigo mesmo. Epicuro chega a escrever que o verdadeiro sábio não participará da vida pública e, mais, desaparecerá da ágora: “vive ignorado” é um de seus aforismos. Claro é que a ética não desaparece inteiramente. O Jardim de Epicuro ainda é um lugar de encontro, mas não mais no sentido aristotélico da partilha de experiências políticas, seu caráter agora é extremamente individual. Com o advento da filosofia romana (Lucrécio, Sêneca, Cícero) uma palavra vem para substituir a ética e já traz em si as características de interiorização que iriam marcar o afastamento do homem do espaço público. É Cícero, quando constrói em latim seu vocabulário filosófico, que traduz ética em seu correlato latino moris (morada, lugar, habitação) e lega ao mundo uma nova palavra: moral. Embora partam de um mesmo campo significante, o ethikós grego e o moris latino guardam curiosamente uma distinção básica na esfera de seu campo semântico. Ético é o comportamento humano que envolve uma relação de diálogo, uma formulação política. Já moral é uma qualidade particular, monológica e, talvez, pré-política. Um comportamento moral funda-se em uma subjetividade que tem a ver com o indivíduo e que envolve uma qualidade da alma. Quando enunciamos ética a alma não está subentendida, a alma está ausente, pois ético é o lugar da concretude dos relacionamentos baseados em um código racional que se dá dialogicamente. Quando dizemos moral é a alma que sobressai, pois, um comportamento moral possui um código que prescinde do diálogo para sua instauração, é uma qualidade transcendente do ser. A pura imanência da ética pertence aquela bios politikos que Aristóteles julgava ser mais digna de ser vivida. A transcendência da moral está alicerçada em um costume pessoal, silencioso e reto e que também, depois da ascendência do cristianismo, amparada em Deus.

Esta interiorização da ética já prevista em Sócrates, sua metamorfose para dentro, sua elocução moral é, no entanto também parcialmente socrática na medida que o agon socrático é conjuntamente uma invenção de Platão. A obediência ao daimon em Sócrates difere da obediência aos ditames da consciência que adveio com o cristianismo porque este movimento em Sócrates ainda é feito visando à exterioridade dos resultados, a investigação filosófica em Sócrates mira o posicionamento do homem na pólis. A consciência moral não tem necessariamente que ver com a cidadania, ela a si indaga e a si responde, é uma virtude silenciosa. O pensamento latino desde o início marca o afastamento da ideia da virtude como algo voltado para a comunidade. A virtude, no helenismo e no período romano, é um atributo individual, nasce da relação do homem consigo mesmo e a partir daí a ideia da pólis como educadora começa a morrer. Com a ascensão do Império Romano o aperfeiçoamento das prerrogativas do ser foi deixado para a faixa pré-política do relacionamento dos homens que é a solidão. É na solidão – estóica em Marco Aurélio, epicurista em Adriano – que o aspecto moral subjetivo da virtude derrota o aspecto ético, objetivo da vida na pólis.

De uma certa maneira isto denuncia uma contradição no cerne desta que foi a mais política das civilizações. Foi o Império Romano, como atesta a criação de seu monumental sistema de leis, uma materialização social eminentemente política em todos os seus aspectos. Imperialismo, Republicanismo, formação de senados, organização estatal burocrática, todas estas são expressões da eminência da política no coração de Roma. E, no entanto, a habitação (moris) já não era no espaço público e sim no espaço privado da sua casa onde surgia um ser moral.

O cristianismo alicerça finalmente a educação humana não mais em sua relação com a exterioridade da ação, mas para a esfera pessoal; para o cristianismo é o diálogo da fé o suporte definitivo da moral e a submissão do homem aos desígnios de Deus é a prova de sua alta moralidade. A habitação do homem já não se encontrava mais no mundo, o mundo se tornou o seu lugar de exílio, sua passagem pelo sofrimento, seu lar agora estava nas esferas de Deus. Sto. Agostinho, no epicentro do colapso do mundo antigo, ao retomar o platonismo projeta uma ética que ao mesmo tempo é uma espera pela Cidade Justa e a reinvenção da Cidade de Platão em um mundo já não mais concreto. Ele já é todo moral. O impulso político que tinha sustentado o Império Romano se esfacelou frente às hordas bárbaras e agora seria missão da Igreja reorganizar a sociedade dando ênfase à subjetividade da meditação salvadora, a nova devoção espiritual como a construção do verdadeiro mundo que se alicerça na construção do eu. Contra o imoralismo dos bárbaros – imoralismo entendido até como a qualidade nômade dos que não tem um lugar original que lhes embase comportamentos civilizados, não tem moradia – ergueu-se o código ordenador da Igreja. Neste ponto a objetividade das formulações da ética já tinha se metamorfoseado da subjetividade da moral. O modo de ser do homem deixou o espaço público e achou refúgio nos abismos da alma e da fé e do racionalismo da ética fomos para o apaixonamento da moral e a partir daí os dois significados díspares da ética e da moral passaram a se confundir.

Um lugar importante no percurso desta peregrinação da palavra ética é a filosofia de Maquiavel (1469-1527). Após mil anos habitando com esta qualidade interior da moral como uma fiadora da virtude humana, já não podendo mais dela se separar, Maquiavel visando principalmente a necessidade da vida política nas cidades-estados, separa radicalmente a ética (a realidade da ação da vida exterior, política) da moral (com os limites de ação própria no mundo). A virtude da política já não é mais a virtude do indivíduo, aprofundando as suas diferenças.

Mais tarde Espinosa traria novamente para a luz da discussão filosófica a distinção entre o valor racional da ética e o teor religioso da moral. Na Ética Demonstrada a Maneira dos Geômetras (1677) o racionalismo espinosiano identifica todo transcendente da produção moral como o ato de autoprodução de Deus e este como um modo de construção do real, ancorando assim a exterioridade na subjetividade de Deus. A peregrinação da ética das praças abertas da Grécia até aos átrios fechados dos conventos, em Espinosa se resolve nas franjas do real absoluto da existência do mundo.

Mas é talvez em Kant (1724-1804) que esse transito da ética em sua peregrinação nos campos da semântica se deparará com uma nova concepção de seus sentidos. Em Kant a ética não é moral subjetiva arbitrária, um modo de interiorização, nem é o fundamento político exigido pelas cidades. Kant, que já pertence ao mundo moderno do Iluminismo com sua nova concepção da posição do homem, não mais na pólis, não mais somente em si, mas tendo o mundo inteiro como sua província (já que o Iluminismo se pretendia um movimento universalizante), Kant busca o fundamento da moral na razão. Sua concepção da moral se apoia na razão pura, é a priori, universalizável, autônoma, formal e é o horizonte de si mesma.

De uma certa forma figurada (não equivalendo a uma equiparação das doutrinas) em Kant a moral retorna as suas origens da ética platônica. Nele, o mundo do eidos que conformava a avaliação do mundo pela mente em Platão, agora é um ditame da Razão Pura.

Depois de Kant em Hegel a ética novamente se desloca. Ela vai para a perspectiva moral do indivíduo isolado, da sua consciência, intenção, dever e convicção subjetiva. Ela se concentra no “dever-ser” puro (assim como o imperativo categórico kantiano) mas é incapaz de determinar concretamente o que deve ser feito no mundo complexo das relações sociais. Pode levar ao subjetivismo extremo (“minha consciência é o juiz supremo”) ou a conflitos insolúveis entre convicções igualmente subjetivas. Para Hegel, enfim, a verdadeira liberdade e realização ética não estão na pura interioridade da Moralität (que ele vê como um momento necessário, mas insuficiente), mas na integração do indivíduo nas estruturas objetivas da Sittlichkeit (moralidade). É nas instituições da família, da sociedade civil e, acima de tudo, do Estado racional, que o sujeito transcende sua particularidade e participa de uma “vida ética” compartilhada, que dá conteúdo real aos seus ideais morais subjetivos.

Neste momento, entre Kant e Hegel, guardadas todas as enormes diferenças, um quase espelhamento do que, parece, sempre foram as oscilações entre a ética e a moral, estes conceitos que ao longo da história do pensamento passearão da interioridade (como agora em Kant no secularizado conceito do Imperativo Categórico) para a exterioridade na necessária encarnação da liberdade da ética nas instituições como a Família, a Sociedade Civil e no Estado Racional.

O percurso peregrino deste conceito talvez revele a ambiguidade fundamental do homem, o conflito essencial, nunca resolvido, entre o espírito e a mente. Estas modificações e oscilações, sempre transitando em campos de atração semânticos tão evidentes, espelham algo do próprio destino humano como um ser inacabado e fundamentalmente inacabável.

Um sinal negativo (e há os positivos) deste inacabamento é que hoje nos extremos da civilização total do capitalismo pós-industrial, o sentido gregário da ética se esgarça frente as imensas forças do controle social dos Estados e das grandes corporações. Com a diminuição do espaço social e o predomínio da ideologia, a consciência ampliada do eu, que é uma das precondições para o discurso moral, ao voltar-se para si não encontra mais a amplitude e o repertório de ações que validem a solidão que se tornou vazia. Este desenraizamento do homem moderno do espaço social e do eu psíquico (eu psíquico dito também vida do espírito) volatilizou em dois lugares comuns os significados da palavra ética e de seu correlato latino moral. A maneira de resgatar estes dois significados através da história e coloca-los de novo em circulação na corrente viva do sentido existencial continua uma tarefa. E assim este conceito que sempre reencarna na história, está mais uma vez em caminho. Ao pensa-lo nós também ajudamos a desenhar seus outros horizontes, talvez melhores, novas moradas para este conceito fundamentalmente generoso.

Le Monde d’hier de Stefan Zweig

Na vida de Stefan Zweig está figurada a existência e o desaparecimento de um tipo de ser humano que representou quase a síntese dos valores humanistas europeus que se consolidaram no século XIX. É a existência de uma classe privilegiada pela geografia e pela história, a alta burguesia europeia em sua trajetória de emulação e depuração da herança da aristocracia.  A acumulação de riqueza nestas famílias burguesas tinha enfim possibilitado a esta geração de herdeiros a possibilidade de vivenciarem os dons da arte e da música e o século XIX, com a consolidação do capitalismo industrial, deu condições para que alguns sujeitos pudessem desfrutar de tudo isso e a partir de aí criar a arte que influenciaria o século XX. ´e deste mundo de privilégios que trata este livro, deste auge de um império que representava o passado da Europa, um passado que estava prestes a ruir em meio as suas contradições. Na construção de Zweig falta talvez a constatação de que aquele universo privilegiado (da alta burguesia europeia do Império Austro húngaro) era uma bolha cujo o entorno e a própria sobrevivência estavam ancorados em uma corrente de miséria e exploração. De qualquer forma este volume de memórias é admirável até mesmo por este espírito humanista um pouco ingênuo, esta crença, não mais agora possível nos valores da cultura e esta confiança de que a literatura pudesse ser um idioma de entendimento fraternal e profundo entre as pessoas. Esta delicadeza, quase uma pureza intelectual que encontramos neste texto, nos remete a um sentimento que mesmo tendo desaparecido do horizonte do mundo ainda parece encarnar um anseio poderoso, um pressagiar de uma possibilidade humana que vale a pena conhecer. Para mim um belo livro, com suas sentenças e seu pensamento generoso a respeito da raça humana apesar das guerras e da desolação. É triste saber que poucos anos mais tarde Zweig se mataria, sem mais forças para prosseguir uma vida da qual tudo aos poucos foi retirado. Ainda assim, mesmo sabendo deste destino, esta é uma vida bela, de princípios elevados (mesmo em suas contradições) que devemos conhecer e respeitar. Esta releitura me fez bem e foi bom reencontrar o humanismo fraterno de um homem como Stefan Zweig.

Reflexões sobre a vaidade dos homens de Matias Aires

Para Ariano Suassuna, Aires foi o maior filósofo brasileiro do século XVIII, e fazia parte da nossa indigência anti nacionalista, o fato de ser desprezado pela Universidade. Pode ser. Para mim é muito europeu e europeu de seu tempo e da sua classe social (a aristocracia endinheirada da época). Como quase tudo naquele tempo, era um escritor profundamente influenciado pelo pensamento francês (La Bruyére, La Rochefoucauld): cartesianismo de fundo e moralismo misantrópico como enchimento. Há a chave do pessimismo que já está dada pela fonte principal de todas estas reflexões, o Eclesiastes. É a constante percepção da futilidade das ações humanas, já que somos sempre limitados pela decrepitude e pela morte, pelo esquecimento e pela desaparição. Mas em Aires há um fundo jansenista, os dos vazios pascalinos da eternidade apavorante pairando como uma nuvem de melancolia sobre o texto, o pavonear do caniço pensante e sua puerilidade evidente. É tudo muito acertado, mas este desencanto com os Homens (este plural metafísico voraz e que abarca tudo) sempre me parece um pouco postiço e, na sua generalidade, impreciso. Deixa toda a vida humana, que é vária e sentida e vivida de maneiras diferentes, muito igual e melancólica e aborrecida, como se, afinal, fosse uma experiência que, examinada em profundidade, significasse muito pouco. Este deve ser, eu acho, o problema com os Moralismos, estas escolas de máximas morais através das quais um sujeito depressivo, em geral misantropo e mau amado, discorre sobre toda a vida humana, os homens e mulheres de todos os tempos e idades e aldeias e cidades e nações e, a partir daí, delimita que “tudo é”. Será? Bom, é de qualquer forma uma leitura agradável e, se não fala tudo a respeito da humanidade inteira, diz o suficiente do tipo de homem que escreveu: sua classe e sua época, seus preconceitos e seus horizonte espirituais. E o que mais poderíamos pedir?

O Milênio de Manuel Vazques Montalbán:

Leitura de Milênio de Manoel Vazquez Montalbán

Pepe Carvalho, o detetive da série de romances policiais de Manuel Vazquez Montalban, é o personagem principal (junto com Biscuiter, seu ajudante) deste que não é um romance policial. Há uma leve intriga policial de fundo que dá início e de certa forma perpassa todo o romance, mas que é tão diáfana que quase nem serve de fio condutor. Pois Milênio é um livro de divagação e viagens, da geografia da história e da geopolítica do final do primeiro milênio. Uma construção peripatética em torno das comidas, conflitos, monumentos, cidades, países, da cultura planetária e deste interregno entre dois milênios. Há nele o velho tema do inescapável Dom Quixote. Em milênio estamos novamente dentro da tradição cervantina do diálogo elucidativo entre dois antagônicos complementares: Carvalho e Biscuiter, ou (na ampliação do comentário intertextual de toda a narrativa) Bouvard e Pécuchet. Pois aqui também nesta sentimental journey (outro intertexto), os personagens atravessam todas as imensas tolices (mortal tolices) dos conflitos geopolíticos deste final de milênio, e encontram a estupidez humana em todos os graus e latitudes. Mas, ainda assim, não é um livro de derrota e pessimismo já que em todo ele atravessa a engenhosidade humana, a possibilidade, ainda, de uma utopia, uma coragem estoica de ver o abismo da existência sem se deixar tomar por este abismo. Mas é acima de tudo livro político e de esperanças políticas. Por exemplo o livro fala em vários pontos da esperança para as esquerdas que foi naqueles anos a primeira eleição de Lula e aí comenta neste parágrafo profético:

“Será uma glória, será uma glória porque será o primeiro ano de poder das esquerdas no Brasil com Lula, um autêntico símbolo para a América Latina. ..É UM MISTÉRIO SABER COMO A ESQUERDA COMSEGUIRÁ GOVERNAR SEM TIRAR NEM UM TOSTÃO DA DIREITA, POIS DO CONTRÁRIO A ESQUERDA SERÁ DEGOLADA, E, SE ALGO MUDAR PARA QUE NADA MUDE, A ESQUERDA PERDERÁ O PODER E, ALÉM DISSO, TERÁ DEIXADO DE SER UMA ESPERANÇA” Esta profecia 20 anos depois se realizou e a esquerda para muitos deixou de ser uma esperança.

Daí que este é um livro de ajuste de contas, o ajuste de contas de um pensamento de esquerda, de uma certa fraternidade de oprimidos que encarou todos os fracassos de suas lutas no século XX , fracasso que já se anunciava na força imensa do pensamento neoliberal e seu desprezo pela vida. Para mim, particularmente é um livro dolorido, pois é um livro de meditação do envelhecimento e da recordação. Há nele o humor amargurado que evidencia uma certa impotência e seu final aponta o tamanho de nossa confusão e da nossa derrota.

O Cadáver de Cristo no Sepulcro de Hans Holbein, o moço 1520/22

De todos os motivos da arte ocidental nenhum foi tão repetido como o tema da morte e crucificação do Cristo. Da Idade Média até o Surrealismo, desde Giotto até Dali, poucas escolas de pintura e pouquíssimos pintores deixaram de tratar do motivo infindável que é o do martírio de um deus e de sua morte, seja como reflexão ou com crítica este é um motivo recorrente no Ocidente. Todo nós temos nosso próprio repertório de imagem pungentes e tristes, consoladoras, às vezes, ou trágicas, do momento mais alto da civilização cristã: a hora evidente em que o ritual corporifica o mito e o propõe à imaginação futura. Quem em sua alma não guarda a sua imagem particular, comovedora, pungente, tragicamente bela, do fim da vida de Jesus, da consumação de seu destino, deste seu destino que discursa sobre nós? Afinal, a vida de Cristo foi urdida para se resolver naquele momento, para a submissão de sua vida ao desejo do Altíssimo, para a impressão da infinita caridade de sua morte; o amor supremo e transcendente de seu inominável martírio? Seja em Miquelangelo, em Caravaggio, em Andrea Mantegna, em Rubens, a multiplicidade das versões propõe sempre o mistério infinito da inevitabilidade da morte, o alfa e o ômega, o principio e o fim de todas as coisas e, ao mesmo tempo a esperança simbolizada em sua vida e que é nosso consolo. A técnica pode variar, como varia o tempo, o espaço e as escolas: a perfeição de Grunewald, a deformação expressiva em El Greco, a espiritualidade noturna de Velásquez, o eros mal disfarçado de Caravaggio; as variações em sua riqueza inesgotável apontam para o cerne espiritual do tema repetido. Que se olhe, por exemplo, a sublime infância do Cristo de Chagall, a inocência selvagem da representação de Gauguin, a solenidade normativa em  Quentin Matsys no Enterro de Cristo. Compare ainda a robusta força do Cristo da Palha de Rubens com todas essas composições e se terá uma amostra da extensão do poder fundador da mais importante representação da morte no Ocidente, a ideia que funda a Civilização Ocidental. Desde o mais divino ao mais humano, a imaginação pictórica esboçou todas a matizes de interpretação e a complexidade de sentimentos em torno da descrição da morte de Jesus.

O Cadáver de Cristo no Sepulcro de Hans Holbein, o moço de 1520/22, é, talvez, entre todas, a mais pungente em sua humanidade, a mais dilacerante em sua verdade, a mais completamente terrena de quantas representações hajam do Cristo Morto. Dela, Dostoievski disse que era capaz de destruir a fé de um homem, e esse caráter avassalador de humanidade simples e inglória que Dostoievski percebeu, é o mais evidente traço desta horripilante visão, não de um deus, mas de um homem morto. Não só pelos cabelos desgrenhados que tombam sujos sobre o lençol branquíssimo, os olhos já mortos, entreabertos, impiedosamente perscrutando em desespero e desconsolo. Não só pela barba pontiaguda e semítica, palestina, a boca aberta como se tentando respirar, a magreza macerada da face, o tom cinzento da pele assassinada, e de todo o conjunto que nos apavora. A magreza extrema do profeta, seu corpo torturado pela pobreza, a ascese, o abandono; a extrema feiura deste umbigo saltado, desta anatomia suja, deste corpo apenas pele e osso, longo, doloroso, mortal.

Quem vê o Deus ali? Holbein pinta a morte sem contemplação, destrói a figuração idealista da beleza sublime, do alvor idealizado proposto desde a Idade Média. O Cristo louro da Renascença, o Cristo germânico de Rubens, o Cristo quase pagão de Caravaggio. Não, pintor realista de retratos, Holbein vê o Cristo quase que historicamente, e esta é sem dúvida a mais verossímil constatação da rigidez hierática do Senhor morto, o seu esgar sem transcendência ou sublimidade, sua humanidade profunda; totalmente imerso na imanência e na história.

Não é por acaso que esta visão surge de Holbein, um mestre do retrato na turbulenta Basileia do século XVI. Vivendo no centro da Reforma, num mundo que começava a colocar a experiência humana direta acima dos dogmas das instituições, e sendo influenciado pelo humanismo crítico de Erasmo, Holbein não estava a ilustrar uma teologia. Estava a retratar um corpo. E talvez só um pintor daquele tempo, entre o medieval e o moderno, teria a coragem de trocar a glorificação pelo luto, e a ressurreição pela fria constatação do túmulo.

O ponto central do quadro, além da face contristada, que é a máscara perfeita do último respirar da vida, são os pés negros e mortais, é a mão crispada e apodrecida, os dedos longos e cinzentos que já começam a morrer e estão, no entanto, se agarrando a vida que se já foi perdida. É nesta mão que está contida a afirmativa maior do quadro, e, não inutilmente, é ela que ocupa o centro horizontal do desenho e sua intercessão, o centro vertical. Ela diz que este homem que cumpriu o desejo de Deus e que foi crucificado para redimir a humanidade, que este homem não queria morrer. Seus olhos entreabertos e seu espanto mortuário expressam a surpresa de quem quisera sonhar com a esperança, e de que o martírio fosse, ao final, apenas um sonho. E nisso reside a intuição magistral do profundo cristão que foi Dostoievski, ele viu que antes que a celebração do ápice da vontade de Deus, este quadro afirmava o horror e inutilidade de todo sofrimento e de toda morte, pois o sofrimento, a tortura, a violência e a dor apequena o ser humano e subtrai a dignidade natural da morte. O tema sempre proclamado da grandeza metafísica da morte de Cristo encontra em Holbein a sua mais profunda negação. Este Cristo dilacerado, este corpo sofrido e amargo representa a morte em seu caráter inumano e propõe-se como o mais simples corolário do absurdo. Holbein conseguiu transformar o motivo cristão tradicional do martírio divino em uma comovente afirmação humana sobre a dor, a miséria e o sofrimento. Pois quem jaz ali não é o filho eleito de Deus, nem o Rei dos Reis martirizado pelos homens, e muito menos um deus que se deixou abater para que se cumprisse os desígnios da Palavra Divina. Ali quem jaz é o mais humilde dos homens, um esfaimado profeta semita surpreso com a consumação de seu inútil martírio; um corpo dilacerado que em seu sofrimento nos dói, mas que jamais nos consolaria. A figura horizontal e plana contém um elemento de clausura asfixiante que ressalta a angustia da morte, a solidão do enterrado, o esvanecimento da vida, a fragilidade do corpo, mas nunca a sublimidade de um deus.

Vivendo em um século violento (XVI) onde os atritos da fé eram a mós dos homens, Holbein, talvez, tenha pensado mais no caráter humano da morte que na transfiguração divina e assim fez de seu Cristo uma reflexão sobre a abjeção do sofrimento e da indiferença da natureza a condição humana. Esta é talvez a mais niilista representação do Cristo, sua impotência nas mãos do destino consumado que se parece com a nossa própria impotência diante da dor. Esta solidão do enterrado, este esvanecimento da vida, ganham uma ressonância ainda mais dolorosa quando lembramos que este painel foi concebido para ser um epitáfio. Ele não foi feito para a luz pública de uma igreja, mas para a contemplação privada do luto de um homem. Holbein pintou, não para a fé de uma comunidade, mas para a dor específica de quem perdeu alguém. E é nesse registro íntimo e universal do luto que a obra atinge a sua brutal exposição.

Neste aspecto, a pintura foge à representação clássica da última hora do Senhor. Não celebra a possibilidade de ressureição, não louva a dignidade do suplício, não enseja a crença, não engendra diretamente a esperança.

Vendo-a nos toma um sentimento de desamparo, uma tristeza um encontro nu com nossa mais banal humanidade.

Este elemento francamente real no interior do quadro é o que trai a sua modernidade. Para o nosso tempo, repleto de imagens gestadas nos horrores da ganancia que leva populações inteiras a morrer de fome e de sede; de guerras de espoliação que atiram na errância multidões de refugiados em desespero e de milhões de desassistidos, este quadro guarda uma terrível familiaridade. Afinal este Cristo não difere dos corpos dos milhares de milhões de mortos em nosso tempo vítimas da violência sem sentido. A maceração da carne torturada nesta pintura está longe do motivo religioso e perto, muito perto, das tentativas da fotografia e do cinema de darem concretude ao sem sentido, ao horror, a chaga da indiferença pelo sofrimento que continua a apodrecer no coração da humanidade.   

Seria tolo e forçado falar de uma antevisão de Holbein das atrocidades de nossa época com 400 anos de distância. Não, não há antevisão. O que acontece é que toda dor humana se parece e o sofrimento sem sentido iguala todos os seres humanos na clave comum da dor. A época de Holbein foi a época da Reforma e da Contrarreforma, foi a época da incursão mortífera dos europeus no Novo Mundo. Certamente era familiar a Holbein a imagem do sofrimento em um tempo de tantas mudanças e massacres. Ele não precisou prever nenhum holocausto, pois a história humana é de uma certa forma uma sucessão de holocaustos, uma história onde somente as motivações exteriores mudam, mas permanece o mesmo impulso cruel e indiferente pela dor humana.

E esta escolha dialoga com o humanismo de Erasmo, que ele tão bem retratou: uma visão que privilegiava a imitação de Cristo na sua humildade e sofrimento terrenos, convidando à piedade e à introspeção, mais do que à celebração triunfante e que não se deteve no testemunho e no lamento pela inutilidade de tantos corpos lacerados.

Esta representação é a mais seca, a mais despojada, é simplesmente um corpo humano morto estendido sobre o branco lençol que o acolhe momentos ante de seu sepultamento. Se retirarmos do quadro a ideia de que ele é a representação do Cristo, resta um motivo banal. Somente é que nesta banalidade reside a grandeza e a profunda humanidade que confere um alto valor ético a esta representação. A morte não guarda um sentido transcendente que seja justificado pelo sofrimento, guarda somente a nudez de seu não-significado. As vezes cabe a arte humanizar o que em sua brutal nudez é desumano e com a violência de sua representação sacudir nossos sentimentos embotados. Reeducar os nossos sentidos para o que há de verdadeiro no sofrimento das pessoas de modo que possamos compartir a dor dos outros e posicionarmo-nos contra a morte inútil, inutilidade que diminui a dignidade mesma da morte.   

O Coração do Agnóstico

Estou debruçado na releitura do Purgatório da Divina Commedia. Este canto intermediário do grande poema tem sido a fonte de minhas reflexões e de minhas alegrias poéticas nos últimos anos. Longe da beleza cruel e amarga do Inferno e das inefáveis e transparentes dádivas do Paradiso, o Purgatório sempre me pareceu o canto humano por excelência, o canto terrenal e secular da poesia de Dante. É nele que podemos encontrar uma paisagem mais humana, uma conformação mais reconhecível de nossa própria condição de penitentes. Ali não estamos no infra mundo do Inferno, não estamos no super mundo das esferas do Paraíso, estamos em um espaço reconhecível como a nossa Terra, novamente no solo perceptível de nosso planeta e na medida de nossa humanidade.

É ainda o Canto de Virgílio, a mais profunda das personagens da Divina Comedia.

No coração do agnóstico paira metafórica a sombra de Virgílio. Principalmente a do Virgílio do Purgatório e que no canto III, melancolicamente, “chinó la fronte e piú non disse e rimane turbato”. Da mesma forma em que na concepção do agnóstico há também um céu entrevisto e que jamais – dada a condição de sua natureza e existência – jamais será alcançado. Para este só haverá por certo os sofrimentos da consciência das várias visões do Inferno, a suave alegria, a menor alegria, talvez, de testemunhar por alguns momentos aqueles que, possuindo a fé, penetrarão no Paraíso. Assim como Virgílio, para o qual a razão é insuficiente, mas também a graça é pouca, os peregrinos do agnosticismo estão condenados a zona intermediária entre a sombra e a luz, ao conflito de uma interrogação sem resposta, a sombria certeza de seu lugar. A perdição de Virgílio se dá em um acidente cronológico, nasce antes do advento de Cristo em uma cultura pagã. A condenação do agnóstico é a sua razão ter indeterminado a sua fé que já tinha sedimentado a desconfiança da razão. Convivendo com os niilistas do ateísmo e com os beatos da fé o agnóstico reflete, medita e cala e seu silêncio parece ao de Virgílio e é, como ele, um exilado de Deus.

Memórias do Condado de Hécate

Gostei muito da leitura do livro de contos de Edmund Wilson Memórias do Condado de Hécate. Há muita elegância na prosa de Wilson e principalmente uma capacidade descritiva que vai aos detalhes mais importantes de uma determinada atmosfera. A crítica em geral despreza o Wilson da prosa de imaginação e praticamente o admoesta a ficar nos limites da crítica. Acho demasiadamente estreita esta visão, e embora a ficção de Wilson não ascenda a dimensão de sua prosa, deve e merece ser lida e meditada pelos que gostam da literatura.

Dois dos seis contos, me chamaram a atenção A princesa dos cabelos dourados e Os Milholands e sua alma condenada. O primeiro é uma narrativa bastante crua, quase cruel na sua sutil descrição do relacionamento do personagem com duas mulheres de classes sociais diferentes. Wilson, com seu estilo objetivo e direto caracteriza a imensa distancia destas duas mulheres através de vários detalhes como a roupa, os gostos, a fala e principalmente os seus ambientes e seus passados. Mas principalmente disseca o tratamento de classe, a base de amargura e preconceito que está inscrita em nosso comportamento social, no modo como lidamos com os seres humanos através de uma rede de relações construídas sobre os alicerces da luta de classes. É um conto amargo de amor.

Os Milholands e sua alma condenada é uma divertida narrativa, sarcástica, irônica sobre o mundo editorial e, por tabela, de toda a falsidade e representação artificial do mundo intelectual. Wilson demole uma a uma as imposturas da vida editorial da América do início do século vinte, o tom postiço de suas pretensões, a falsidade de suas mais altas alegações de cultura e seriedade. O conto desnuda o modo pelo qual as mais baixas demandas materialistas se fantasiam para o público como altas expectativas culturais e jogos civilizados; como os personagens que encenam uma alta espiritualidade não passam de materialistas grosseiros que encontraram no mundo dos livros um mercado adequado para as suas ambições. O alvo dele é claro é a sociedade capitalista americana do início do século XX, o modo como tudo era visto como mercadoria e produto, onde tudo estava envolvido pelo desejo puro de lucro e o cálculo frio das perdas e ganhos financeiros. Um grande conto, mas tem duas faltas: a primeira é que Wilson de uma certa maneira apresenta este mundo em contraposição – ele imagina – de uma época passada, o século XIX, onde os verdadeiros intelectuais ainda faziam o jogo verdadeiro do espírito. Há uma certa idealização da geração anterior que, esta sim, ainda estaria imbuída dos “verdadeiros valores da América”. A segunda falta é a seguinte: este é um conto de muito humor e sarcasmos e crítica. Sob o olhar do autor nada fica sem ser ridicularizado ou ao menos reduzido a sua verdadeira dimensão, em geral, mesquinha e ridícula. Tudo está posto à prova, tudo menos o autor. Ao narrador de Wilson (e suspeito, ao próprio Wilson) falta a auto ironia, o dom superior que, sem ser depreciativo, permite a alguém rir de si mesmo. O narrador de Wilson se leva a sério mesmo fazendo parte do mesmo ambiente editorial que ele perfeitamente ironiza. Não consegue rir de si mesmo e isso faz de parte de seu riso apenas escárnio. Mas ao perceber isso nós também rimos de Wilson.

Dois Pontos

Há muitos anos venho escrevendo para me distrair: não para ensinar, nem para convencer, mas para tornar habitável o mundo interno que a leitura e a reflexão tornam possível. Os cadernos se acumularam, as notas se sobrepuseram, pequenas ideias e intuições foram deixadas à margem dos livros que me acompanharam como companheiros invisíveis ao longo da vida. Apenas recentemente percebi que todas essas formas dispersas obedeciam a uma mesma fonte, uma mesma tonalidade afetiva, uma mesma disposição intelectual: acolher antes de julgar, compreender antes de classificar, escutar sem desejar impor.

Pensei, então, que talvez esse impulso fosse algo mais que um hábito: talvez um método, talvez uma virtude. Algo nascido de uma falta — lembro-me do poema de Drummond, A falta que Ama, do livro As Impurezas do Branco — uma falta compassiva regida por uma paixão intelectual. Não é, nem pretende ser, uma categoria moral. Não deriva da bondade ou da piedade.

É, antes, um modo de relação com o conhecimento: pensar com humildade, sem certezas, buscando o rigor, aspirando à coragem, mas mantendo o pensamento suficientemente aberto para ser modificado pelo que encontra.

É uma paixão que queria ser compartilhada num diálogo, uma compaixão intelectual que nasce da constatação de que ler é sempre um encontro precário: autor e leitor tentam nomear o que os atravessa; ambos carregam sombras, incompletudes, intuições em estado germinal. Ao reconhecer essa falta compartilhada, torna-se possível instaurar um diálogo renovado — sem violência, sem medo, sem arrogância interpretativa.

Este espaço nasce, portanto, da decisão de tornar público um gesto pessoal: a leitura como hospitalidade; a crítica como forma de cuidado; o pensamento como afinidade de eleição.

O blog reúne ensaios, notas e reflexões que atravessam a filosofia, a literatura, a história, a mística e outras regiões de sentido. Não busca sistematicidade (que não possuo), nem autoridade (que não tenho), mas interlocução amiga.

A base epistemológica deste espaço é simples: compreender é incluir sem dominar; é ser modificado pela alteridade sem dissolver-se; é manter a lucidez no ponto em que a luz da sensibilidade se intensifica.

No limite, compreender é acolher — no sentido mais amplo, rigoroso e generoso da palavra.

Se há aqui algum propósito, que seja o de oferecer uma pausa: uma pausa diante do imediatismo hermenêutico, da hiperinterpretação, das certezas cruas. Um lugar onde a leitura, enquanto ato pessoal, recupere sua dimensão artesanal, meditativa, humana e, no fim, comunitária. Uma pequena praça em uma cidade impossível, onde possamos pensar sem pressa e aprender com confiança como compreender com generosidade.