Homens que Leem Livros: Jorge e Miguel, do Escrutínio da Biblioteca à Biblioteca de Babel.

É muito lida, discutida e admirada a famosa cena do capítulo VI do Quixote onde o cura e o barbeiro destroem, com a ama e a sobrinha, a biblioteca do fidalgo Alonso Quijana. O título inteiro do capítulo é “Del donoso y grande escrutínio que el cura y el barbeiro hicieron en la libreria de nuestro ingenioso hidalgo’. E de fato é uma das cenas inaugurais e determinantes do romance, onde ficamos conhecendo um pouco os parâmetros que conformam o personagem, a concentração e escolha de seus temas, a origem de sua loucura, assim como da tensão familiar gerada por aquela posse. A ama tanto quanto a sobrinha temem o encantamento dos livros e por causa deste temor os odeiam. Os livros para elas têm um poder mágico e tenebroso, e por isso a ama dá um frasco de água benta ao barbeiro e diz “Tome vuestra merced, senhor licenciado, rocie este aposento; no este aqui algún outro encantador de los muchos que tiene estos libros e nos encanten…”   Os livros são, naquela casa, fonte de disputa e terror.

Devemos supor que, dadas as condições da educação da época, as duas sejam analfabetas e daí, menos que substância, os livros seriam monstros materiais encantados, não o espírito do Mal, mas a sua corporificação. O cura e o barbeiro já seriam outra coisa: um certo semiletramento pretensamente ilustrado que teme, não o poder materializado do mal no livro, mas seu espírito e sua essência. Eles é que executam o “donoso” (gracioso, garboso) escrutínio e destruição da biblioteca depois de uma certa ponderação “erudita”. O cura e o barbeiro não são, no entanto, apenas semiletrados; são as autoridades locais (religiosa e social) aplicando um index librorum prohibitorum doméstico. Eles não queimam por ódio, mas por uma pretensão pedagógica e sanitária. Assim, de um lado está o perigo que os livros correm por causa da ignorância; do outro o perigo que correm em razão de uma suposta autoridade.

O que faz este episódio mais apavorante para nós leitores é o dia seguinte. No dia seguinte, após os livros serem queimados e as cinzas serem escondidas, o quarto onde estavam os livros é emparedado e mesmo a memória da biblioteca é suprimida. A destruição da biblioteca não bastava; era necessário destruir também a possibilidade de lembrar que ela um dia existiu. A censura não se contenta apenas com a eliminação do objeto, ela quer também remodelar a memória. Dias depois, o velho Quijada, tendo se recuperado das pancadas, vai procurar a orientação e consolo em seus velhos livros e nada encontra. E é a partir daí que já não há mais retorno e toda a ficção teria que se encarnar no mundo.

Mas como? A partir daquele momento o Quixote passa a ser a sua biblioteca em movimento, a sua ficção em ação, as suas leituras implementadas na realidade. Vítima de uma atenção carinhosa (afinal os quatro biblioclastas estavam agindo com as melhores intenções) só resta ao Quixote viver a sua biblioteca, ser a sua biblioteca em um esforço da vontade e da memória. Notadamente da memória.  Ao lermos o romance podemos observar que a cada momento ele evoca um episódio lido para validar as suas ações. Ele não só está regido pelas ordens da cavalaria que extraiu dos livros, mas da lembrança dos episódios e das ações de seus predecessores literários. E é assim porque em sua prodigiosa memória (capaz de recitar a todo momento poemas inteiros com inúmeros versos) ele carrega uma biblioteca completa, milhares de páginas compulsadas, contos, poemas, citações, filosofia, ensaios. É de dentro da memória de Quijana que o Quixote lê e reescreve o mundo.

Uma memória que supera a morte. Senão vejamos. O gesto do barbeiro, do cura, da ama e da sobrinha é (guardadas as boas intenções) um ato de assassinato que podemos desdobrar em duas direções. Em primeiro lugar é a tentativa de controlar o espírito (diríamos hoje, a subjetividade) do Quixote, destruir pela imolação dos livros a imaginação e a memória que são o fundamento da sua personalidade. Mas é também, sob o ponto de vista interpretativo e simbólico, um ato contra a própria leitura, um incêndio para destruir a possibilidade da interpretação, do sonho, da ficção e da imaginação como potências necessárias para a vida humana.

Isso permite então que vejamos a aventura posterior do Dom Quixote como um ato de resistência, da retomada integral da vida e da proteção da memória. Porque nos livros está, de certa forma, a memória da humanidade.

A memória da humanidade é, em suma, um assunto metafísico, e quem disso irá tratar, melhor do que qualquer um, será Borges, que em essência foi, talvez, o leitor ideal de Cervantes e, poderíamos supor, o ilustre leitor nomeado no segundo volume; e mais ainda, o insuspeito bibliotecário da Biblioteca de Babel que guarda a memória de todos os livros do universo, uma memória metafísica que está fora da história e contém em si tudo o que foi é e será produzido. Pois, se o Dom Quixote é o primeiro grande romance que coloca o leitor no centro da obra, Borges radicalizará e mostrará que, a rigor, na produção infinita da memória dos livros, não há obra, o que existe é o ato do leitor.

Mas eu diria um pouco mais, Borges foi também o Quixote que por causa da cegueira teve que utilizar a sua memória para reinventar o mundo.

Mas vejamos o primeiro ponto. Borges colocou o leitor na centralidade absoluta de seu projeto literário. Neste projeto ler é escrever e escrever é reescrever. O “Pierre Menard, Autor do Quixote” é a mais direta e conhecida ilustração deste projeto borgiano, mas há outras neste sentido e menos lembradas.

Uma das mais poderosas surge de um de seus projetos conjuntos com Adolfo Bioy Casares que é o livro Crônicas de Busto Domecq. Neste pequeno livro estão os textos ‘Homenagem a Cesar Paládion”, “Uma tarde com Ramon Bonavena”, “Em Busca do Absoluto” etc em que esta vertigem da reescritura é levada ao paroxismo. Nestes e em alguns outros contos deste volume todo o universo da literatura é repetição e paródia, é a leitura que reencena os livros. Por exemplo, já no primeiro texto “Homenagem a Cesar Paládion” lemos, se referindo a trajetória de Paládion: “O período 1911-1919 corresponde, já, a uma fecundidade quase sobre-humana: em veloz sucessão apareceram : O Livro Estranho, o romance pedagógico Emílio, Egmont, Thebussianas (segunda série), O Cão dos Basquerville, Dos Apeninos aos Andes, A Cabana do Pai Tomás…” prosseguindo na enumeração da “obra” de Paládion e concluindo “ a morte o surpreendeu em pleno labor, segundo testemunho de seus íntimos , tinha em avançada preparação o Evangelho segundo São Lucas, obra de corte bíblico”. O humor cervantino em Borges se hipertrofia no espelhamento e abismo da escritura.

Estes contos, assim como o “Menard”, apontam que o texto é imutável, mas a leitura é sempre nova. Em Borges o leitor determina o texto. O Ilustre leitor de Cervantes com Borges se instala no centro da literatura.

Este centro é a Biblioteca de Babel, que é de tal forma abstrata e transcendente que está protegida de todos os escrutinadores e incendiários. Uma biblioteca que se projeta para uma esfera que, como o Aleph, é o alfa e ômega de todas as coisas. Em Borges a biblioteca de Quijana se volatizou em um espaço sutil. Em Borges o quarto da biblioteca de Cervantes agora é todo o universo.

Mas devo dizer porque, para mim, Borges foi também Quixote.

Eu propus acima que a aventura de Quixote foi um ato de resistência, um modo de sobrevivência a uma violência só aparentemente executada pela ama, a sobrinha, o cura e o barbeiro.  E digo aparentemente porque a violência ressentida de Quixote que o faz penetrar definitivamente no terreno da ficção, antes estava dada pela feiura do real, um mundo real de tortura, de escravidão (Cervantes foi escravo), de encarceramentos vis, de guerras, destruição e sofrimento, Em Cervantes a derrota da Batalha de Lepanto, a perda da sua mão esquerda, as misérias de sua vida familiar era o núcleo de sofrimento que ele transmutou em Dom Quixote e o fez o campeão de todas os injustiçados do mundo. Ao sair pelo mundo tendo como arma a memória de seus livros lidos, reorganizava para si um sentido mais alto de um mundo que não tem sentido. E assim, de uma certa maneira, também Borges, porque há em Borges um núcleo melancólico que somente através dos livros reorienta o mundo. Do mesmo modo como a memória de Quixote, a memória de Borges era uma biblioteca de interpretação e estratégia para dar sentido a um universo que fundamentalmente não faz sentido. E é nesse aspecto, para mim, que o destino de Borges, muito borgeanamente, reescreve o do Quixote. Não apenas pelos horrores evidentes das facinorosas guerras do século xx, não apenas no grau inesperado de inumanidade que floresceu em torno dele durante a sua vida (não só por isso, pois Borges sempre se declarou o menos político dos autores), mas por alguns detalhes específicos de seus versos (e fala-se muito pouco do Borges poeta, para mim um dos mais importantes poetas do século XX), como Le regret d’Héraclite que diz:

“Yo, que tantos hombres he sido, no he sido nunca

aquel en cuyo abrazo desfallecía Matilde Urbach.”

No qual se oculta uma marca melancólica que talvez resuma toda uma vida.

Por fim gostaria de dizer que, por uma vez, o incêndio da biblioteca medieval de Miguel de Cervantes se encontrou com a biblioteca labiríntica de Jorge Luis Borges.  No romance O Nome da Rosa o também ilustre leitor Umberto Eco fez coincidir estes dois universos retirando o livro da proteção metafísica criada por Borges e o devolvendo aos riscos mundanos que Cervantes compreendeu. Diante das evidências da História (os livros destruídos na Guerra Civil Espanhola, o bibliocausto nazista, as bibliotecas bombardeadas na segunda guerra mundial, os livros milenares destruídos com a invasão do Iraque) e compreendendo a grandeza da concepção de Borges, devemos sempre lembrar que os livros são elementos frágeis, sujeitos aos escrutínios da simples desaparição e da força, mas que são eles que guardam a memória dos homens e como Borges e Cervantes ensinaram, são a essência mesma da Humanidade.