
Eu sempre gostei de Shakespeare. Diante da bardolatria que encontro em geral em todos os artigos que falam dele, posso dizer que que tenho por ele um amor moderado. Este é um dado da minha relação com ele, que nada tem a ver com a grandeza intrínseca e reconhecível de Shakespeare, mas com os limites que existem na história de leitura de todos os leitores. A literatura é infinita e nossa capacidade de ler é limitada, e dessa forma ao longo de uma vida acabamos lendo algumas coisas e deixando outras para mais tarde, uma tarde que nunca chega. Mas dele li alguma coisa e tudo que li me marcou de alguma forma. Mas Hamlet, Júlio César, o Rei Lear, O Mercador de Veneza, A Tempestade, entre outras peças dele que consegui ler, nenhuma é tão importante para mim como Macbeth. Seria uma mentira dizer que li pouco Shakespeare, até porque só o Macbeth eu li mais de quarenta vezes e sei que se ainda houver tempo, lerei mais quarenta.
E a minha maneira de ler essa peça (talvez mesmo como a maneira que tenho de ler todas as coisas) é bastante idiossincrática e pessoal, como penso, deva ser toda leitura. Assim, mesmo considerando que Macbeth é mesmo a tragédia sobre a ambição e a loucura, quero propor uma leitura da peça como uma tragédia da linguagem.
Macbeth é a mais curta e mais intensa das peças de Shakespeare. Uma peça cuja ação em linha reta impressiona tanto no palco como no texto escrito, pela concisão e consistência, a absoluta coerência entre o tema e os personagens e a força inigualável da poesia. Seu objeto evidente é a ambição e o malogro, sua expressão é de uma tragédia medieval, mas do medieval da alma, a noite escura do espírito que não pertence à época nenhuma e pertence a todas as épocas, pois a ambição desmesurada está no centro do destino humano.
Regido por sua obsessão e traído por ela – a rapidez da ação que o leva diretamente da vitória à degradação é um dos melhores elementos do texto – Macbeth tem o perfil de todos nós em sua fraqueza; tem, mesmo em sua desumanidade, algo que é comum a todos os homens: a debilidade de um desejo que é preenchido pelo desejo de outras pessoas que o manipulam até a despersonalização, até o momento em que cessa de ser o senhor de suas próprias ações e passa a ser movido pelos acontecimentos.
Mas, para mim, antes de tudo, Macbeth é uma peça sobre as palavras, uma tragédia sobre os textos e o modo como nos movemos guiados pelas nossas leituras, o preço a ser pago pelo nosso desletramento. Porque, se para o dramaturgo a ação (movimento, cena, interpretação) é o principal instrumento de expressão, para o poeta é a palavra e seu poder de contágio, o material supremo de trabalho. Macbeth é assim a meditação de Shakespeare sobre seu instrumento de trabalho: a linguagem, a força que tem a palavra e os textos para mover o mundo.
Compreendo que esta não é uma interpretação comum de Macbeth, mas é uma interpretação cabível e, creio, que sustentada pela peça e pela peculiaridade de ser a tragédia de um poeta. Pois, para um poeta as palavras nunca são apenas um meio, são um meio e um fim inseparáveis.
Agora, antes de propriamente analisar Macbeth, gostaria de lembrar o Polônio de Hamlet, alguém que tem prazer no que diz e em como o diz, e que discursa rolando prazerosamente as palavras no leito de sua boca, mastigando-as, saboreando-as, sentindo-as. Para mim é sempre um prazer particular reler em Hamlet as cenas em que Polônio exercita este seu dom natural para a tempestade de palavras, um fato tão natural como a própria vida.
Uma fala entre muitas é o seu diálogo com Hamlet – puro jogo verbal – onde ele descreve os atores que acabaram de chegar como sendo hábeis em todos os tipos de papéis “eithers for tragedy, comedy, history, pastoral, pastoral-comical, historical-pastoral, tragical-historical, tragically-comical-historical-pastoral, scene indivisable, or poem unlimited” (Hamlet, act 2, scene 2). A verborragia cômica de Polônio claramente demonstra que ele é uma caricatura do excesso verbal — alguém que ama as palavras, mas não as compreende inteiramente.
E, afinal, o resumo de Hamlet, a síntese da sua filosofia é: “words, words, words”, sempre as palavras, e o resto é silencio.
Mas como leio Macbeth, ela aparece (ao menos para mim) como a tragédia da má avaliação do texto, da leitura enganosa dos símbolos do real.
Vejamos, já no início da peça, na dança das “three witches sisters” elas nos alertam que “fair is foul, and foul is fair” explicando, desde o princípio, para os que vão penetrar na peça, que nada do que parece é; e que a linguagem é um jogo tanto para a descrição da realidade como para o seu ocultamento. Se o belo é feio e o feio é belo, ou seja, os opostos se tocam no reino das palavras (e do real) em que poderemos nos basear em nosso caminho pela floresta da realidade? E é nesta armadilha que cai Macbeth.
No início da peça, ao retornar de uma batalha com seu amigo Banquo, ele é saudado pelas três irmãs bruxas como barão de Glamis, barão de Cawdor e, por fim como rei. Inesperadamente mesmo Banquo é saudado com as enigmáticas palavras “hail Banquo, lesser than Macbeth and greater, not so happy, yet much happier” signos de um futuro misterioso e promissor. Mas se as bruxas são realmente os guias do real, Macbeth tem neste momento a chance de evitar toda a tragédia, pois ali intui linguisticamente toda a rede de enganos que a previsão das bruxas trazia escondida, já que prontamente as identifica como “imperfect speackers”, as faladoras imperfeitas. Ele, no entanto, prefere ignorar sua intuição e aceita a previsão que elas fazem. Mesmo percebendo com palavras a armadilha das palavras que elas encarnam, resolve apostar na visão das bruxas e é arrastado para o seu fim. É ao personagem de Banquo que cabe a explicitação desta desconfiança que as palavras devem suscitar, o cuidado que devemos ter ao nos aproximarmos do discurso. Banquo diz: “But this is strange: and ofentimes to win us to our harm the instruments of darkness tell us truths, win us with honest trifles to betrays in deepest consequence”. Como Macbeth havia percebido, mas não aceito, Banquo vê que há um abismo escuro por trás das palavras, um significado que depende de quem lê e interpreta. Ao arriscarmos uma leitura errônea do real podemos estar dando ouvidos aos “instruments of darkness” e o que era aparentemente belo assim revela a sua face feia e seu sentido horrível.
O erro fatal de Macbeth, que ignora sua intuição e a desconfiança de Banquo, é tomar as palavras pelo que elas aparentam ser, (uma certa literalidade) apesar de ele mesmo utilizá-las como um jogo para iludir e enganar. A retórica da peça é exatamente esta: onde está o significado real das coisas? O que são as coisas de modo que possamos interpretá-las, conhece-las, conduzí-las? Duncam, que já havia se iludido a respeito do Duque de Cawdor, diz: “ there’s no art to find the mind’s construction in the face”. O único caminho para descobrir a construção do espírito do homem seriam as palavras. Mas o que Shakespeare nos diz é que elas são também o melhor meio de ocultar a verdade que de toda alma esconde.
Shakespeare sabe e procura demonstrar que são as palavras que conduzem as ações humanas, (somente o famoso discurso de Marco Antônio no enterro de César na peça Júlio César seria suficiente para provar a alta consciência de Shakespeare sobre os poderes da retórica), mas as conduzem de uma tal maneira pela qual jamais possamos confiar inteiramente nelas: “to beguile the time look like the time”, tenha a aparência, look like, assemelhe-se, pois no jogo de poder do mundo, é necessário sempre parecer. A ideia muito shakespeariana do mundo como um palco tão belamente dita no Mercador de Veneza “I hold the world but as the world, a stage where every man must play a part and mine is a sad one” é, afinal, uma das mais recorrentes na poesia de Shakespeare. O mundo é um palco onde cada um tem o seu papel, nossas palavras são falas de uma peça da qual desconhecemos o enredo. Se Macbeth toma as palavras pela realidade, se aceita o texto das bruxas como o enredo é porque há algo de encantatório nas palavras, um poder persuasivo que nos levam a ações que nem sempre seriam as nossas. As palavras escondem e, ao mesmo tempo, conduzem o mundo. No grande teatro do mundo as falas ocultam e revelam o sentido e cabe ao poeta desmontar o sentido oculto da linguagem. A fala encantatória das bruxas conduz Macbeth, suas palavras são mágicas e sinuosas, o que querem na verdade dizer? As falas de Lady Macbeth também de alguma forma expressam um texto do crime. É por meio de sua retórica implacável e da inversão dos papéis de gênero (‘unsex me here’) que a ambição vazia de Macbeth é preenchida por um outro discurso mais forte, pronto para encejar uma ação concreta, provando que a palavra tem um poder emocional capaz de nos mover para aonde quer.
Em contrapartida a fala de Macbeth também busca enganar a todos sobre o seu intento obscuro. Seja com as bruxas, com Lady Macbeth, ou com Macbeth as palavras são um instrumento de engano, manipulação, ocultamento. Logo após mandar assassinar Banquo, Macbeth promove um banquete em sua homenagem e saúda-o em sua ausência, no mais belo discurso: “Here had we now our contry’s honour roofed/Were the graced person of our Banquo present”. Mas o ápice da rede de enganos é quando as bruxas fazem as previsões da invencibilidade de Macbeth prevendo que ele deve ser “bloody, bold and resolute; laugh to scorn the power of man for none of woman Born shall harm Macbeth” e “Macbeth shall never vanquished be until great Birnam wood to high Dusinane hall come against him”. Estas duas sentenças lidas por Macbeth como o sinal inquestionável de sua invulnerabilidade e como garantia de sua vitória era na verdade o vaticínio mais amargo de seu fim. No final, quando Macbeth está encurralado, as profecias se revelam trocadilhos literais e traiçoeiros: Macduff não “nasceu de mulher” no sentido natural, e o Bosque de Birnam se move escondendo cavaleiros camuflados. Tudo está perdido.
Afinal, porque? Macbeth, general aguerrido do rei, nobre respeitado, não era especialmente ambicioso ou mau no início da peça (note-se, ele não é Iago, ele não é Edmundo) mas é, no entanto, arrastado para um objetivo muito acima de seus desejos e aparentes pretensões de poder. Após o primeiro contato com as palavras das bruxas, algo nele muda. As bruxas, com palavras apenas, usam-no como um joguete, alegremente.
O que me surpreende sempre em Macbeth é a gratuidade do mal, o modo como sem nenhum motivo um homem cava o seu próprio tumulo e a sua perdição. Um homem não necessariamente mau, mas que perpetua o mal, não necessariamente cruel, mas capaz de todas as crueldades. Neste aspecto Macbeth é uma metáfora poderosa – se formos tentados a lê-lo como uma metáfora – de todos os tiranos que arrastados pelas circunstâncias instauram a barbárie no centro da civilidade. Daí a banalidade das razões, o jogo gratuito do mal com forças desconhecidas, o clima de corrupção geral da fala e das ações humanas. Mas o dom da linguagem é gratuito e o mistério que a linguagem carrega consigo com seu poder de convencimento e seu encanto está muito acima de nosso entendimento. Talvez esteja nas raízes emocionais da linguagem a força que conduz Macbeth ao seu delírio sanguinário, pois a peça trata do abandono da razão, da vitória do irracional sobre o mundo do equilíbrio e da bondade que de uma forma também se assenta na fala. Duncan é bom, bom soberano, pai e amigo, (Macbeth diz: “the gracious Duncan have I murdered”) ele é colhido pela irracionalidade de uma ambição vazia e este vazio das ações e dos personagens (vazio preenchido pelo discurso enganoso das bruxas, vazio preenchido pela potência retórica e emocional de Lady Macbeth) é o sentido maior da peça. O niilismo tão evidente no conjunto de todo o drama é o niilismo que a palavra pode engendrar quando não é vigiada pela razão e pelas normas de correção e equilíbrio da ética. A vida é um conto narrado por um idiota cheio de som e de fúria e que nada significa. Mas o significado final pode ser dado por nós, se bem orientados lermos corretamente. Pois sem orientação ética o texto do real é marcado pela ausência de sentido, um barulho sem significado e somente som e fúria que não pode ser interpretado. Podemos, caso abandonemos nossos princípios humanos, apostar nesta ou naquela interpretação, uma aposta no vazio, não importa, sempre perdemos; sempre estaremos sujeitos a abstrações, a entropia, ao caos e ao acaso. Como Macbeth terminaremos balbuciando palavras sem sentido em meio a um universo que não tem nenhum significado. E o resto é silencio.