O Coração do Agnóstico

Estou debruçado na releitura do Purgatório da Divina Commedia. Este canto intermediário do grande poema tem sido a fonte de minhas reflexões e de minhas alegrias poéticas nos últimos anos. Longe da beleza cruel e amarga do Inferno e das inefáveis e transparentes dádivas do Paradiso, o Purgatório sempre me pareceu o canto humano por excelência, o canto terrenal e secular da poesia de Dante. É nele que podemos encontrar uma paisagem mais humana, uma conformação mais reconhecível de nossa própria condição de penitentes. Ali não estamos no infra mundo do Inferno, não estamos no super mundo das esferas do Paraíso, estamos em um espaço reconhecível como a nossa Terra, novamente no solo perceptível de nosso planeta e na medida de nossa humanidade.

É ainda o Canto de Virgílio, a mais profunda das personagens da Divina Comedia.

No coração do agnóstico paira metafórica a sombra de Virgílio. Principalmente a do Virgílio do Purgatório e que no canto III, melancolicamente, “chinó la fronte e piú non disse e rimane turbato”. Da mesma forma em que na concepção do agnóstico há também um céu entrevisto e que jamais – dada a condição de sua natureza e existência – jamais será alcançado. Para este só haverá por certo os sofrimentos da consciência das várias visões do Inferno, a suave alegria, a menor alegria, talvez, de testemunhar por alguns momentos aqueles que, possuindo a fé, penetrarão no Paraíso. Assim como Virgílio, para o qual a razão é insuficiente, mas também a graça é pouca, os peregrinos do agnosticismo estão condenados a zona intermediária entre a sombra e a luz, ao conflito de uma interrogação sem resposta, a sombria certeza de seu lugar. A perdição de Virgílio se dá em um acidente cronológico, nasce antes do advento de Cristo em uma cultura pagã. A condenação do agnóstico é a sua razão ter indeterminado a sua fé que já tinha sedimentado a desconfiança da razão. Convivendo com os niilistas do ateísmo e com os beatos da fé o agnóstico reflete, medita e cala e seu silêncio parece ao de Virgílio e é, como ele, um exilado de Deus.