O Diálogo do Dom Quixote: do Engenhoso Fidalgo ao Engenhoso Cavaleiro

Eu leio o Dom Quixote há quarenta anos e há quarenta anos sou um devedor de Cervantes, que em sua alma mal ferida e melancólica gestou a mais humana das criaturas literárias. Um Dom Quixote que, para mim, começa na leitura do prólogo, onde a inesgotável ironia cervantina anuncia a esfera de humor que será o fio condutor de todo o romance. Define-se já ali, em sua primeira frase, o grande sujeito de toda a história da literatura: este “desocupado leitor” que há quatrocentos anos ocupa toda a história e que, de certa forma, é no romance como a prefiguração de si mesmo. Desde esse prólogo estabelece-se a literatura como jogo, a ironia como regra e a modernidade como estrutura. É nesse primeiro romance da história dos romances que a desconstrução da ilusão narrativa e da própria produção literária começa. Apesar de se confessar, de saída, como contestação aos livros de cavalaria, o Quixote é também a crítica e o elogio de toda a literatura, a homenagem e a celebração de todos os “desocupados leitores” que, como Quijano, “de mucho leer y poco dormir”, passaram grandes partes de suas vidas lendo. E é no prólogo que nasce a grande gozação e a grande alegria popular que é o Dom Quixote, onde tudo — desde o maravilhoso título — vai-se desdobrando até revelar a poética figura do Cavaleiro da Triste Figura, que, sem estar presente, já o encarna e prefigura.

A célebre primeira linha — “En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme…” — é, na sua essencialidade geográfica, amplidão e suave melancolia, um falso começo. O verdadeiro início da revolução literária de Cervantes ocorre antes, no prólogo frequentemente ignorado, que não é um preâmbulo ocioso, mas o manifesto da atualidade cervantina. É neste momento que a narrativa se volta sobre si mesma, põe em questão sua autoridade, seus mecanismos de aparição e a segurança de seus propósitos. A confissão das dificuldades de escrevê-lo, o diálogo fictício com um amigo que lhe sugere uma erudição postiça, encena o ato inaugural da ironia literária e da impostura da crítica. Agora o romance já ri de si mesmo e da encenação literária de seu e nosso tempo. Nesse gesto de consciência metalinguística, Cervantes inaugura a modernidade e o desocupado leitor é a sua testemunha, talvez até seu cúmplice inadvertido, nesta revolução narrativa.

Mas, dez anos depois, na segunda parte, esse leitor é renomeado como “lector ilustre”. Renomeado e promovido. O que aconteceu? Aconteceu a consagração da obra, aconteceu o Quixote apócrifo de Avellaneda que tanta dor de cabeça causou em Cervantes. O novo prólogo, com seu novo tratamento modifica o tom do registro e já não brinca com a dificuldade de escrever, mas transforma-se em instrumento de polêmica direta, demonstrando que o mundo de ficção criado por Cervantes havia ganhado vida própria. E o leitor agora “ilustre” era convocado a participar novamente, neste momento com a sua ilustração, não mais com sua ociosidade, mas desta vez como testemunha da excelência do verdadeiro Quixote. Esta convocação do Leitor nos dois prólogos revela que aí não há meramente um elemento ornamental, mas um recurso narrativo que modifica toda a percepção do livro.

Mas há outras mudanças entre os dois livros além do status do leitor. Vejamos uma delas.

O primeiro livro tem por título El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de la Mancha e a segunda parte se intitula El Ingenioso Cavallero Dom Quixote de la Mancha, e nisso há uma sutil mudança. O personagem que começou a sua aventura como nobre decaído da memória das antigas ordens feudais da Espanha, pobre e envelhecido, mas com o espírito suficientemente lúcido para engendrar a sua transformação, agora surge, não mais como um engenhoso fidalgo, e sim como aquele que todo o mundo já conhece por suas aventuras, aquele que tinha escrito o seu nome na história e se reinventado de fidalgo à cavaleiro. Pois, afinal, a sua fidalguia anterior era uma condição da sua linhagem assumida, de sua ancestralidade presumida e da sua casa. Sua condição de cavaleiro não, pois esta foi urdida – e agora era reconhecida em todo o mundo – no embate com uma ordem hostil e indiferente. Disso decorre a nomeação do aventureiro da segunda parte como Cavaleiro, herói do feito das armas, personalidade sabida e reconhecida pelos personagens da segunda parte. Esta modificação de seu status foi conseguida a partir da qualidade comum as duas parte e presente nos dois títulos: a engenhosidade. No sentido que entendo, esta engenhosidade é uma mistura de inteligência e imaginação, o que não excluiria a inocência, a loucura e uma certa obtusidade generosa. O que há de comum ao Engenhoso Fidalgo e o Engenhoso Cavaleiro é este dado criativo da imaginação que engendra soluções delirantes e justas (o ideal) para as circunstancias postas pelo real. É esta engenhosidade, comum ao Fidalgo e ao Cavaleiro o que permite ao Dom Quixote escapar aos estratos mais humildes da loucura para alcançar aquela loucura luminosa que engenhosamente desmonta o jogo da realidade. Como Cavaleiro o Quixote percebe-se e se reconhece no livro II como filho de suas obras e ações, personagem que é a invenção livre de sua imaginação e de seu engenho.

E esta é, talvez, uma das ideias centrais do romance, ou seja, que cada um é filho de suas obras. Já no capítulo IV, Dom Quixote profere essa sentença ao menino Andrés: “cada uno es hijo de sus obras”. No contexto imediato, a aplicação é ingênua e desastrosa (sua intervenção piora a situação do menino), mas o princípio é profundo e será corroborado por toda a trajetória do personagem.

Essa ideia da autonomia da vontade e da virtude pessoal que é construída, me parece uma crítica central (e que estará em outras partes do romance) da ordem aristocrática e hierarquizada da Espanha do século XVII, uma sociedade obcecada por limpieza de sangre e títulos herdados, onde os valores estavam nos títulos, nos acasos dos nascimentos e se estabeleciam como presumidos, dados, aceitos quase como uma condição essencial do homem. Como só um Cervantes faria, ao longo de toda obra ele denuncia e revela como impostura aquilo mesmo que está no frontispício de seu livro, o patronato de um Duque de Beiar, Marques de Gibraleon, Conde de Benalçar y Bañares, Visconde de la Puebla de Alcozer, Señor de las villas de Capila, Curiel, y Burguillos ou a Pedro Fernandes de Castro, Conde Lemos e Andrade y de Villalua, Marques de Sarria etc.… da segunda parte.

Por essa razão, para mim, o Dom Quixote é um livro necessariamente parcial e que toma o partido dos despossuídos. E penso que este sinal de nascença está posto desde o princípio no episódio da sagração de Dom Quixote no capítulo III  “Donde se cuenta la graciosa manera que tuvo Dom Quixote em armarse Caballero”, onde então lemos que Dom Quixote é sagrado cavaleiro pela figura levemente acanalhada de um pobre vendeiro, analfabeto e astuto, tendo como testemunhas duas prostitutas e um punhado de arrieiros, em uma estalagem de beira de estrada de terceira categoria.

A reinvenção do ritual medieval (castelo, damas, capela) subverte a ordem hierárquica em que se assenta todo o passado da estrutura aristocrática. Aqui, Cervantes executa uma crítica profunda à sociedade estamental da Espanha do Século de Ouro, que venerava o sangue, os títulos e a linhagem. Dom Quixote, ao contrário, é um cavaleiro legitimado pelos rejeitados, pelas putas, pelos pobres, pelos excluídos.

Somente o vendeiro já exigiria um ensaio à parte e toda uma genealogia. Eis como ele se apresenta a Dom Quixote: Depois de dizer que em sua juventude também foi uma espécie de cavaleiro andante, diz: “que él, ansimesmo, en los años de su mocedad, se había dado a aquel honroso ejercicio, andando por diversas partes del mundo buscando sus aventuras, sin que hubiese dejado los Percheles de Málaga, Islas de Riarán, Compás de Sevilla, Azoguejo de Segovia, la Olivera de Valencia, Rondilla de Granada, Playa de Sanlúcar, Potro de Córdoba y las Ventillas de Toledo y otras diversas partes, donde había ejercitado la ligereza de sus pies, sutileza de sus manos, haciendo muchos tuertos, recuestando muchas viudas, deshaciendo algunas doncellas y engañando a algunos pupilos, y, finalmente, dándose a conocer por cuantas audiencias y tribunales hay casi en toda España”. Ou seja: ele foi ladrão, vadio e delinquente, sedutor e aproveitador, um fugitivo da lei que ainda chama tudo isso de “honroso ejercicio”. E assim estamos no auge da ironia cervantina.

Eu penso que o Vendeiro é o pícaro, mas o pícaro deslocado, o pícaro burgês. O pícaro é uma figura central da literatura espanhola do Século de Ouro (com obras como Lazarillo de Tormes e Guzmán de Alfarache). Como tipo ele tem: uma origem humilde e marginal, uma moral de sobrevivência, um itinerário de aprendizado pela prática, o humor como denúncia. Mas, enquanto o pícaro clássico é um eterno deslocado, um anti-herói sempre à beira da fome, o Vendeiro representa o que acontece com o pícaro quando ele já está dentro do sistema e já é um proprietário.

Imagino que a figura do Vendeiro prefigura Sancho por seu tipo físico e é ao mesmo tempo uma visão irônica de como os explorados podem ver a si mesmos como “Cavaleiros Andantes” ou como escudeiros (no caso de Sancho), como um espelho social invertido, o signo carnavalizador no centro da narrativa. Por fim, é na sagração de Dom Quixote que o elemento da narrativa pícara reatualiza e transforma toda o idealizado mundo do romance de cavalaria. A visão de Cervantes se dá pela base da sociedade e a marca em seguida disso é a malfadada primeira aventura como cavaleiro em que o Dom Quixote se insurge contra um patrão explorador que chicoteava um empregado. Sua vitória é malograda, mas sua primeira intenção fica evidente.

É claro que estes são um ou dois aspectos do romance, de um romance que é fundamentalmente inesgotável em sua capacidade de gerar interpretações. Com tudo o que disse não arranhei nem na superfície de tudo o que este romance me provoca a cada releitura, cada releitura que renova e aprofunda minha dívida com ele. De tudo que ele me deu, deu-me principalmente a abertura e a capacidade para o diálogo, pois o Quixote é também em sua essência uma pedagogia do diálogo, da leitura e da leitura como diálogo. Nos prólogos há o diálogo de Cervantes com o ‘desocupado e, depois, ilustre leitor”, mas há também o diálogo interno entre Cervantes e seu amigo erudito. Por todo o enredo, entretecido de histórias, o Quixote estará sempre conversando, contando, se entendendo e desentendendo, dialogando com todos os que aparecerem na sua frente. Mas há, acima de tudo, o diálogo fundamental entre Dom Quixote e Sancho Pança onde começamos a entrever tudo o que em um diálogo verdadeiro comporta de afeição e mudança.  Porque é finalmente na encenação deste diálogo que toda a profundidade humana do romance se revela. Em tudo Cervantes os criou como no mais completo antagonismo: o cavaleiro magro e o escudeiro gordo, o senhorial mancebo e o lavrador campesino, o erudito leitor de poemas e o porqueiro analfabeto, no entanto, desde o início, não há desigualdade no seu diálogo. Logo no início, em meio a primeira conversa Dom Quixote pergunta “pues quiém lo duda?” e imediatamente Sancho responde “yo lo dudo”, pois não há subordinação neste diálogo que deste o início se estabelece como respeito e troca. É a paridade na diferença. Ao longo do livro Quixote e Sancho vão se modificando lentamente e no final já são um outro personagem, se tornaram uma síntese de seus sentimentos, Sancho se “quixotiza”, absorvendo a linguagem e a imaginação; Quixote se “sanchifica”, tornando-se mais atento à materialidade crua do mundo. e nós agora só vemos um se vemos o outro. Cervantes nos ensina que  a verdade e a humanidade nascem do encontro, do conflito e da afeição entre perspectivas radicalmente diferentes. Harold Bloom, um crítico de que discordo muito, em um ensaio do livro o Cânone Ocidental  fez essa afirmação brilhante: “Hamlet nos ensina a falar conosco mesmo, mas o Quixote nos ensina a falarmos uns com os outros”. E esta é para mim a lição essencial de toda a literatura.