O Milênio de Manuel Vazques Montalbán:

Leitura de Milênio de Manoel Vazquez Montalbán

Pepe Carvalho, o detetive da série de romances policiais de Manuel Vazquez Montalban, é o personagem principal (junto com Biscuiter, seu ajudante) deste que não é um romance policial. Há uma leve intriga policial de fundo que dá início e de certa forma perpassa todo o romance, mas que é tão diáfana que quase nem serve de fio condutor. Pois Milênio é um livro de divagação e viagens, da geografia da história e da geopolítica do final do primeiro milênio. Uma construção peripatética em torno das comidas, conflitos, monumentos, cidades, países, da cultura planetária e deste interregno entre dois milênios. Há nele o velho tema do inescapável Dom Quixote. Em milênio estamos novamente dentro da tradição cervantina do diálogo elucidativo entre dois antagônicos complementares: Carvalho e Biscuiter, ou (na ampliação do comentário intertextual de toda a narrativa) Bouvard e Pécuchet. Pois aqui também nesta sentimental journey (outro intertexto), os personagens atravessam todas as imensas tolices (mortal tolices) dos conflitos geopolíticos deste final de milênio, e encontram a estupidez humana em todos os graus e latitudes. Mas, ainda assim, não é um livro de derrota e pessimismo já que em todo ele atravessa a engenhosidade humana, a possibilidade, ainda, de uma utopia, uma coragem estoica de ver o abismo da existência sem se deixar tomar por este abismo. Mas é acima de tudo livro político e de esperanças políticas. Por exemplo o livro fala em vários pontos da esperança para as esquerdas que foi naqueles anos a primeira eleição de Lula e aí comenta neste parágrafo profético:

“Será uma glória, será uma glória porque será o primeiro ano de poder das esquerdas no Brasil com Lula, um autêntico símbolo para a América Latina. ..É UM MISTÉRIO SABER COMO A ESQUERDA COMSEGUIRÁ GOVERNAR SEM TIRAR NEM UM TOSTÃO DA DIREITA, POIS DO CONTRÁRIO A ESQUERDA SERÁ DEGOLADA, E, SE ALGO MUDAR PARA QUE NADA MUDE, A ESQUERDA PERDERÁ O PODER E, ALÉM DISSO, TERÁ DEIXADO DE SER UMA ESPERANÇA” Esta profecia 20 anos depois se realizou e a esquerda para muitos deixou de ser uma esperança.

Daí que este é um livro de ajuste de contas, o ajuste de contas de um pensamento de esquerda, de uma certa fraternidade de oprimidos que encarou todos os fracassos de suas lutas no século XX , fracasso que já se anunciava na força imensa do pensamento neoliberal e seu desprezo pela vida. Para mim, particularmente é um livro dolorido, pois é um livro de meditação do envelhecimento e da recordação. Há nele o humor amargurado que evidencia uma certa impotência e seu final aponta o tamanho de nossa confusão e da nossa derrota.