
“Considera, antes de tudo, a mutabilidade das coisas e a contradança da fortuna”
Heródoto de Halicarnasso
I. Heródoto como Filósofo: A Lei da Nêmesis
A historiografia, como outras ciências que agora já são velhas de séculos, tem sua pátria: a Grécia; tem data de nascimento: o século V antes de Cristo e tem um pai: Heródoto de Halicarnasso. Como Pai da Historia Heródoto é apenas um comentário nos livros escolares e, em geral, um parágrafo rápido nos livros especializados. Mas isto é injusto, pois ao criar a historiografia Heródoto nos dá não só uma nova medida na contemplação da aventura humana como também uma lição de compreensão e tolerância.
Pois há uma filosofia embutida na narrativa linear de lendas, fatos, acontecimentos políticos, massacres, vitórias: a de que todo homem está submetido à lei mais alta do equilíbrio universal, da relação misteriosa entre as nossas ações e suas consequências, de que enfim todos vivemos sob o império da Nêmesis: reis, escravos, ricos, pobres, homens e mulheres. Heródoto, ao sobrepor narrativa sobre narrativa busca compreender o mecanismo universal que leva aos acontecimentos, a maneira como o destino se abate sobre determinada personagem. É famosa a história de como Creso capturado por Ciro, e por este condenado a morte pelas chamas, perto da morte se recorda de Solon e de como este lhe havia dito que nenhum homem pode se dizer feliz até o seu momento final. Creso, uma vez tendo se considerado um homem feliz via agora, diante da pira de fogo que o consumiria, que seu orgulho no passado, sua felicidade, sua riqueza nada mais haviam sido que ilusão. Esta história contada por Heródoto dá o resumo e o tom do livro: mostrar ao homem o vai-vem do destino e o abismo de nossa cegueira existencial.
Este método de Heródoto, baseado na autópsia (testemunho ocular, investigação pessoal, viagem) e na coleta de logoi , as múltiplas versões e relatos de diversas fontes e culturas, é o que lhe confere a perspectiva ampla e comparativa necessária para identificar o padrão da Némesis como a justiça distributiva ou vingança divina, contra a Húbris , como desmesura, e orgulho excessivo, não apenas em um evento, mas como uma lei universal que rege os assuntos humanos. Ao ir além da visão local e registrar as histórias de gregos e “bárbaros” (persas, egípcios, lídios, etc.), ele percebe que o ciclo de ascensão, Húbris e queda não é um mero acidente, mas uma constante do destino humano.
É com o uso desse método que a narrativa de Heródoto se mistura a grande corrente intelectual de seu século, um século investigativo, um século da busca da razão sob o fluxo perpétuo dos acontecimentos, da verdade escondida sob a aparência. Para ele, em quem percebemos a presença do pensamento de Heráclito, a vida é mudança constante, é o giro incessante da fortuna, e o historiador é o cronista da mudança, alguém para quem o espetáculo sempre em movimento pode oferecer uma imagem inteligível que sirva para a reflexão das gerações futuras.
A dignidade desta lembrança que justificaria a narrativa de Heródoto é, curiosamente, dada por Platão. Platão em sua última obra, Leis, diz que “o início é como um deus que enquanto está entre nós salva todas as coisas” e para Heródoto a civilização grega era um início que merecia ser salvo para as gerações futuras e por isso penso que a sua narrativa é uma Paidéia, uma tentativa de educar pela lembrança (um dos alvos, às vezes esquecido, da missão do historiador). A sua luta então é contra o esquecimento, ele não quer salvar a todos os fatos, mas os vestígios dos fatos significativos, os relatos que, mesmo menores, ampliassem a compreensão humana. Para isso julga pouco e muito avalia, sabe que no vai e vem dos fatos, gregos e bárbaros se equivalem e se equilibram. Faz parte da sua filosofia a percepção que os homens não são senão vicissitudes e de que “nada mais comum do que a desgraça na opulência e a ventura na obscuridade”
Devemos notar que não é sem tensão que ocorre essa “imparcialidade” na visão de Heródoto. Greco, escrevendo para gregos, sua visão, ainda que ampla, era limitada pelas linhas da sua cultura. Um Tucídides, cuja história é eminentemente política, não deixaria de criticar essa abertura de Heródoto. Tucídides que é o historiador da Guerra do Peloponeso e que teve atuação política se interessa fundamentalmente pela vida da Pólis. Heródoto, que pensa o mundo grego, funda a história antropológica/cultural, Tucídides a história política/estratégica. Mas isso também aponta para a leitura de Heródoto nos dias de hoje.
O Permanente no Fluxo da História
A filosofia grega tem em seu início pré-socrático duas direções conflitantes. Por um lado, temos Parmênides que fala da imobilidade de tudo, em que mesmo as coisas aparentemente em movimento estão em repouso e que, reconhecer este repouso é penetrar na realidade onde as formas fixas e imutáveis, como na matemática de Pitágoras, são a mais alta expressão da verdade, onde o movimento é ilusão. A outra direção da filosofia pré-socrática é o eterno movimento de Heráclito, para ele, tudo é movimento, nada é do que foi e o real é um fluxo perpétuo do provisório ao provisório. Em Heráclito o conhecimento absoluto é impossível já que tudo está mudando o tempo inteiro. É Platão quem vai fazer a síntese da imobilidade pitagórico- parmenidiana com fluxo heraclítico. A resolução destas duas filosofias conflitantes se dará no dualismo platônico: por um lado o mundo das ideias imutáveis da intuição de Parmênides, cognoscível apenas para o filósofo; do outro lado o mundo das aparências de Heráclito em eterna mutabilidade, em perpétua fuga, fugaz, incognoscível.
Mas em Heródoto o conhecimento se baseia no que justamente não pode ser conhecido: fatos, acontecimentos, ações no tempo, tudo o que faz o fluxo heraclítico, sem fim, da história. Mas, se a história é um conhecimento baseado em um objeto sempre mutante, o que ela conhece? Que tipo de saber ela oferece? Que ciência é esta fundada por Heródoto? Parece-me que Heródoto resolve esta contradição ao observar que por trás do comportamento humano há sempre uma lei de compensação e equilíbrio, de reorganização da ordem rompida. Sua narrativa nunca deixa de avisar quanto aos riscos do orgulho desmedido, demonstra a impotência da vontade humana diante da grandiosidade do Destino. Embora sua narrativa se dê em vários lugares, com pessoas diferentes, diferentes épocas e paisagens, Heródoto sempre chama atenção para as similitudes, para o fato que tudo está sujeito à adversidade e que a roda da fortuna está sempre a girar. Este é seu padrão constante, o aspecto fixo que ele busca apreender na diversidade e onde se reencontra com profunda tendência metafísica do pensamento grego, para o qual só o imutável pode ser conhecido. Quando no início de seu livro diz que quer narrar as desavenças entre os gregos e os persas para as gerações futuras, de modo que estas não se percam, está percebendo um padrão de permanência que pode vir a servir para a educação do futuro. Como Pater Historiae (Cícero) ele é o educador, não só aquele que ergue um louvor aos seus contemporâneos para a admiração dos pósteros, mas alguém que ensina um saber contra o esquecimento. Como um grego de seu tempo ele percebe que a sua civilização trazia algo de novo para o mundo, algo digno de ser preservado e ensinado. Daí as suas narrativas (istoréin, testemunho ocular de um fato), que são ao mesmo tempo Historíai, (Pesquisas ou Inquéritos), que incluía as múltiplas fontes e versões de um acontecimento, compulsados para a lembrança. Mas, como grego, ele também estava preso aos pressupostos de sua civilização. Ao dualismo que está na base do pensamento grego, magistralmente exposto em Platão, entre o ideal e o real. Observe-se que aqui, é claro, esse “Dualismo” em Heródoto deve ser visto como uma metáfora. Sabemos que Platão era mais jovem e sua filosofia sistemática é posterior. O que aqui se quer dizer é que Heródoto lida com a tensão entre o permanente e o transitório de uma maneira narrativa, ampla e implícita, enquanto Platão a irá resolver de maneira teórica e explícita. A transformação do perecível em ideia aqui é uma figuração e uma metáfora e não implica na posterior epistemologia do conhecimento em Platão.
E assim, Heródoto vê que o perecível real das ações que se perdem no tempo poderia ser salvo pela história que transformaria este perecível em ideia, algo a ser guardado e transmitido. Fazer o perecível perdurar na recordação é a tarefa do historiador, mas para que perdurar? Sem dúvida para admoestar e ensinar, para corrigir e coordenar novas ações. Narrar é tornar a narrativa um objeto para a compreensão e aprendizado de uma coletividade.
O Poeta e o Prosador: A Linhagem Homérica de Heródoto
Homero, que não foi considerado o Pai da História, mas que era visto por Platão como o pai educador de toda a Hélade é o modelo evidente de Heródoto. Vejamos: em Homero há também a tentativa de preservação de um momento luminoso da aventura grega, há em Homero a compreensão de que a Fortuna, mais que o merecimento e a vontade, que é a fortuna a mão que rege o destino do homem. Há também a imparcialidade no tratamento tanto dos Aqueus quanto dos Troianos (o modo superior por exemplo como ele trata Heitor ou Príamo), o mesmo modo como Heródoto fala dos feitos dos gregos e dos bárbaros. Nestas similitudes as funções do historiador e do poeta se encontram. Sabemos que ao iniciar a Ilíada Homero mostra a roda da fortuna no momento em que ela está dando mais um giro: Aquiles retira-se da luta, o que permite ao exército troiano uma série de vitórias chefiadas por Heitor. Mas como tudo tem sua Nêmesis Heitor mata Pátroclo e desta forma arrasta Aquiles de volta à luta e é este retorno o que decide o rumo da guerra. Some-se a isso a descrição dos navios, o desfilar dos atletas nos jogos, a apresentação do escudo de Aquiles, uma quase história, a narrativa épica como testemunho, a poesia como registro para a recordação. Desta forma, é também a exposição dos vestígios das ações praticadas pelos homens aquilo o que Homero quer nos trazer para fazer com que estas ações não desapareçam, perdurem e, como nas palavras de Platão, nos eduquem.
Já o segundo poema de Homero, a Odisseia, está mais próximo ainda das narrativas de Heródoto, pois que na Odisseia os costumes, as paisagens e a força do destino estão claramente e completamente expostos. A pergunta é: até que ponto foi Heródoto influenciado por Homero? Aparentemente a influência de Homero em Heródoto foi forte e duradoura. De certa forma os inquéritos de Heródoto tem a mesma função da poesia Homérica. O louvor da grandeza, o testemunho da coragem, a transmissão de um saber. Na própria estrutura da poesia épica, do tom altissonante das coisas verdadeiramente grandes, do testemunho compreensivo da medida humana. Lendo a História sentimos o peso que a poesia homérica teve sobre o cronista andarilho. Os versos iniciais da Ilíada – canta ó musa a cólera de Aquiles – ressoam em todo momento nos inquéritos como a calma e a astúcia de Ulisses. No personagem andarilho do Aedo, o herói deambulatório possui o mesmo timbre de voz de Heródoto e o mesmo entendimento. Compreendo o caráter problemático quando aqui aproximo estruturas diversas tão diversas como a poesia épica e a prosa narrativa histórica, mas a ideia aqui é mais de uma aproximação metafórica enriquecedora do que da precisão de um estudo sistemático. O verso homérico de uma época de nobreza bárbara e a prosa refinada de uma época posterior mais aristocrática e sutil, aponta dois períodos limítrofes da cultura antiga. Mantenho, no entanto, que na justaposição destes dois extremos o historiador ilumina o poeta e vice e versa. O tema de Homero poderia ser história, a história de Heródoto poderia ser poesia épica. Tanto uma quanto outra tratam do imponderável espírito humano pertencendo, tanto à poesia quanto a história, ao subjetivismo de seus criadores e a comunidade de suas culturas. A melhor história escrita até hoje é uma forma de arte, não se contentando em ser a apropriação exata de uma época somente. Por isso dizemos a história de Tácito, Vico, Gibbon, a história de Burns e Burckhardt, querendo dizer com estes nomes não só uma visão de mundo, como também um estilo de escritura, uma poética própria na escritura da história.
Ler Heródoto
Tomemos um mapa de Grécia, a geografia dos penhascos e das planícies, vastas escarpas de rochas e pequenas ilhas varridas pelos ventos efésios. A ascensão e a queda das cidades, como sempre na história, obedeceu às leis da mudança do comércio, da geografia e da economia. Corinto, Patras, Atenas e Corfu, a Grécia sempre foi um degrau entre o oriente e a Europa, entre riquezas que mudavam de mãos rapidamente e vastos deslocamentos de poder. Tendo vivido em uma época imensamente política Heródoto pouco se ocupa proporcionalmente com a política. É um historiador da sociedade e de seus costumes com um olho atento para a paisagem física e a mente aberta para comportamentos. Sua tolerância e compreensão transbordam de seu texto e como pai da história é um exemplo de discernimento e sabedoria. Ele possui, já nos primórdios da ciência que inaugura, qualidades que seriam para sempre importantes para o historiador: mente aberta, sensibilidade para o macro e o micro, compreensão sincera, visão unificadora das partes e imparcialidade investigativa. Como não poderia deixar de ser o estudo da história hoje é outra coisa, mais diversa e mais complexa, mais variada e com quase infinitas nuances, mas como Pai da História ainda há algo que Heródoto possa nos dizer.
Muito criticado mesmo na antiguidade (Tucídides foi um dos primeiros a criticar seus métodos,) há algo em seus “inquéritos” que sobreviveu a toda crítica. Seu estilo, seu método de trabalho, sua postura investigativa e penso que, acima de tudo, a resposta a profunda tensão da mente grega e que é ainda a pergunta essencial da metafísica sobre a verdade e a ilusão, o permanente e o transitório. Neste sentido, com a beleza de sua narrativa, ele permanece um autor que ainda hoje tem algo a nos dizer, pois sua história, com o arco milenar que estende no campo de nossa visão, amplia, em primeiro lugar, a perspectiva do tempo que nos ultrapassa. Ensina-nos que a abertura para um outro é essencial para compreensão do outro e de nós, e por fim redefine a humildade epistemológica que devemos ter na inquirição do mundo, pois o conhecimento humano está sempre limitado pelo destino e a perspectiva. E por isso podemos falar de um Heródoto contemporâneo sempre que meditarmos sobre o sentido possível da face do homem no reflexo sempre mutável da História.